Ao
findar de cantar, o coro volta a marchar, deslocando-se, para anunciar a
chegada da rainha. Este módulo anapéstico marca o fim da centralidade do coro e
o início da longa sequência em que vai contracenar com Atossa, mãe de Xerxes e
viúva de Dario, o rei anterior e já morto, e com o mensageiro, que traz notícias
que todos já sabemos.
CORO
140 Mas venham, Persas, tomem assento
neste
antigo lugar
e
em profundos e atentos pensamentos
nos
lancemos. A necessidade é urgente.
Quais
são as ações do rei Xerxes
filho
de Dario?
O
arco esticado está vencendo
ou
a poderosa lança
pontuda
tem prevalecido?
150
Mas aqui chega, como luz dos olhos
dos
Deuses, a mãe do rei
e
rainha minha. Prostro-me
e
todos com palavras de saudação
devem
se dirigir a ela.
A
rainha Atossa chega com sua carruagem e rico figurino, como se vê na saudação
que o corifeu realiza
155 Oh mais alta soberana das vestiacinturadas
mulheres da Pérsia[1]
idosa
mãe de Xerxes, salve oh esposa de Dario.
Tanto
esposa do deus dos persas quanto mãe que gerou um deus,
mesmo
que uma antiga divindade se voltasse agora contra nossa armada.
Pela
primeira vez entramos agora no reino da fala. Até o coro recitou, cantou e
danço. A partir do primeiro episódio, temos agentes que emitem blocos de fala
e/ou contracenam verbalmente com agentes. Para esta modalidade de performance,
a convenção é que um membro do coro, o corifeu, assuma a função de articulador
textos não corais. Temos pois um artista versátil que surge o líder do coro,
como o porta-voz desse coro, versátil por parcipa de ambas e específicas
tradições performativas: a do narrativa, de tradição homérica; e a das danças,
das lírica coral. O resto do coro não irá exercer a palavra metrificada em
trímetros iâmbicos. Isso demonstra que diferencial dessa figura que pertence ao
coro mas dele se distingue. Corifeu, koryphaîos, de
κορυφή, que significa o que acima, na extremidade, a cabeça. Logo isso
se associa a um destaque, ao que é melhor, essencial[2].
Ao contracenar com os agentes não
corais, o corifeu se afasta do coro e estabelece novas relações espaciais. A
partir da entrada dos trímetros iâmbicos, o coro transforma-se em uma ativa
audiência no espetáculo acompanhando as trocas de falas entre o corifeu e
outros agentes. De fato, o coro se desdobra entre a audiência em cena e o
corifeu. Para tanto, inicia-se um
conjunto de reposicionamentos em cena: temos 1- um espaço para o coro observar
e ser observado; 2- espaços para cada um dos demais agentes em contracenação
direta, sejam eles um membro do coro que performa versos de agentes não corais
e os agentes não corais. E é este espaço
que será o foco de interesse da audiência até nova intervenção coral, ou seja
até que o coro invada este espaço com seus sons e movimentos.
Em
resposta à saudação do corifeu, a rainha
apresenta dois relatos, um sonho e uma visão:
ATOSSA
176
Eu tenho com freqüência me entregado de noite a numerosos sonhos
desde
quando meu filho preparou seu exército
e
partiu querendo destruir a terra dos jônios.
Mas
ainda tal como este sonho dessa última noite
180
nada tão vívido eu tinha visto. Vou contar para vocês.
Duas
mulheres muito bem vestidas aparecerem para mim,
uma
vestida com túnicas persas
e
a outra, por sua vez, com vestidos dóricos,
visivelmente
destacam-
se por ser mais altas que as pessoas de
hoje
185
e pela beleza sem mácula. São irmãs de
uma mesma
raça.
Por sorteio, uma vivia em sua pátria, Hélade,
e
a outra na pátria dos bárbaros.
Um
conflito entre elas nasceu, como me pareceu
ver.
Quando meu filho soube disso,
190
tentou contê-las e acalmá-las. Ele as amarrou juntas
em
sua carruagem e afivelou seus pescoços em
um jugo. Uma delas, exaltada em seus vestidos,
abocanhava
as rédeas com submissão,
enquanto
a outra destroça com as mãos
195
os arreios do carro, e violentamente os arremessa
sem
os freios e parte ao meio o jugo.
Meu
filho cai. E seu pai Dario coloca-se
perto
dele, com pena. Quando Xerxes vê seu pai
faz
em pedaços as roupas do próprio corpo.
200
Estas coisas afirmo ter visto durante a noite.
Mas
quando me levantei mergulhei minhas mãos no belo
fluxo
de águas de uma fonte e me dirigi ao altar
com
objetivo de sacrifícios ofertar. Aos deuses que afastam desgraças
quis
fazer libações, a eles estes ritos cumprindo o que era devido.
205
Mas então eu vejo uma águia em fuga para o altar
de
Febo: fiquei estarrecida sem voz pelo medo, amigos.
Em
seguida vejo um falcão batendo as asas lançar-se
contra
a águia, dilacerando com as garras a sua cabeça.
Não
resta a águia outra coisa senão curvada de medo oferecer
seu
corpo. A mim tais fatos são terríveis de ver
como
para vocês escutar. Pois vocês sabem bem
que se meu filho
for
bem sucedido poderá ser um homem digno de admiração,
mas
se se sair mal não será considerado justificável pela comunidade.
Assim
sendo, tendo se salvado, ele continuará
como soberano desta terra.
Este
longo bloco de falas projeta para a
audiência imediata e para os assentados no teatro duas poderosas cenas
audiovisuais se relacionam com a guerra em andamento e os prognósticos, os
sinais de como as coisas poderão se resolver. Seja dormindo à noite, seja sob
os raios de sol, a rainha se encontra atormentada por paralelas imagens “são
terríveis de ver/ como para vocês
escutar”[3].
Ambos os sonhos indicam uma orientação não
muito favorável aos persas e, especialmente, a Xerxes. O jugo, a sumissão da
Europa à Ásia não se realiza, e a queda do líder da campanha persa é indicada. A
poderosa imagem do rei em farrapos aqui mencionada será cumprida na cena final
do espetáculo. A águia, ave relacionada
a Zeus “e emblema dos reis Persas”, foge do falcão, “ave associada aos mais
grego dos deuses, Apolo.[5]”
Como podemos perceber, a peça projeta para o
espectador diversos sons e imagens de eventos parcialmente acontecidos antes da
peça e que terão lugar em cenas adiante.
Núcleo
desse sonho ainda é a síntese familiar: aqui estão reunidos a mãe que sonha, e
rei-pai Dario e o filho Xerxes. É o único momento em que estão juntos. O drama
político passa pelo drama familiar, pois é a sucessão dinástica que garante a
sobrevivência do Império. As decisões dos integrantes dos membros da monarquia
é que vão levar adiante ou não o reino. Dessa forma, Ésquilo transita em
diversos núcleos temáticos e institucionais. Na realidade, nada está distinto:
a ordem pessoal convive com a ordem pública. A trama familiar desdobra a trama
geopolítica. Há uma multiplicação de referências por meio da sobreposição de contextos.
A
entrada da figura do mensageiro acaba por revelar aquilo que antes era
presságio e agouro: o que o coro cantou e dançou e a rainha viu e ouviu em seus
sonhos e visões agora é manifesto da plena narrativa dos fatos.
O
anônimo mensageiro, que não relaciona com a Casa Real nem com os seus
dignatários representantes, também anônimos, restringe-se à função de relatar,
de contador de histórias, de conectar o mundo atual da cena a eventos que se
deram em outros espaços e tempos. Essa restrição dramático-narrativa é,
paradoxalmente, a atrativa singularidade do mensageiro[6].
Nos caso de Os persas ele rouba a
cena. Temos um tipo ator que habilidades
bem singulares. Ele não canta, nem dança. Mas suas longas falas se tornam o
centro da atenção da audiência em cena e fora de Cena. O show muda: temos agora um rapsodo. A Rainha, o Corifeu e o Coro
passam a segundo plano, a platéia. A breve e intensa duração da performance do
Mensageiro (249-531) contrasta com tudo que fora performado até aqui e tudo que
será colocado em cena será uma resposta aos aterradores anúncios.
E
o que ele narra?
MENSAGEIRO
Oh cidadelas de todo o continente da Ásia!
250
Oh terra dos Persas, depósito de muitas riquezas!
Por
um único golpe se deu a destruição de teus muitos
bens!
A flor dos persas caiu e se foi!
OIMOI,
é terrível ser o primeiro a trazer uma mensagem terrível.
Mesmo
assim é necessário explanar toda a catástrofe,
255
Persas. Pois todo o exército dos bárbaros acabou de morrer.
A
técnica é a seguinte: o relato da derrota persa é conduzida em partes. Primeiro
há uma antecipação do resultado da narrativa, que é o resumo dos fatos – as
tropas em combate foram aniquiladas, a invasão foi detida por uma fragorosa
derrota. Há a reação do coro que se organiza em pares estróficos inicia sua
reação ao impacto das informações. A rainha sai de seu silêncio para pedir mais
detalhes, em especial novidades acerca de seu filho Xerxes. Então o mensageiro
inicia o detalhamento da desgraça persa, começando por um catálogo de
comandantes mortos (302-330) ,ecoando a lista cantada pelo coro no párodo, e o
número das embarcações perdidas (336-347). A impressão é de que, sendo o mensageiro um soldado que
acaba de sair front, que chega
correndo em cena, ele comece a relatar os últimos acontecimentos até tomar
fôlego e apresentar uma narrativa organizada de tudo que houve.
A
partir desses momentos iniciais, temos um grande bloco narrativo (353-432), o
momento em que o ator-rapsodo brilha. Aqui se apresenta uma vibrante e ampla
sucessão de eventos. Se por um lado, o Mensageiro manifesta uma autoridade por
ter observado o que relata - “De fato então eu estava presente e não ouvi
palavras de outros,/ Persas, e poderia relatar os males lançados contra eles (266-267).”
- , de outro há uma certa onnicência, uma presença mais que humana, que como
uma câmera nos mostra a arte do narrador dramatizado:
MENSAGEIRO
A desgraça inteira começou, oh senhora,
quando
de
algum lugar surgiu uma vingativa e maligna divindade.
355
Um homem heleno veio da frota ateniense
e
disse estas coisas para o teu filho Xerxes:
quando
a escuridão da negra noite cair
os
helenos não vão permanecer aqui, mas ,saltando
sobre
os assentos dos barcos, tentam salvar suas vidas
360
através de fuga cada um para diferentes lugares sob a escuridão.
Xerxes
quando ouviu isso, não compreendendo que este homem
Heleno
o enganava, nem a repulsa dos deuses para com ele,
de
imediato a todos os seus almirantes proferiu estas ordens:
quando
o sol deixar de aquecer a terra
365
com seus raios e a escuridão se apossar das regiões celestes
eles
deverão ordenar a coluna de barcos em três fileiras
para
guardar as saídas e as passagens dos estreitos do mar
enquanto
outros barcos irão circundar toda a ilha de Ajax.
Se
os helenos escaparem de um destino terrível
370
por com seus barcos encontrando um meio secreto de fuga,
a
regra estabelecida a todos almirantes vão
perder a cabeça.
Isso
foi o que ele disse com coração cheio de confiança
pois
não compreendeu as intenções dos deuses.
Os
almirantes, em submissão e em ordem
375
prepararam o jantar. Cada marinheiro
prendeu
o remo no estaca do barco, pronto para ser usado.
Quando
a luz do sol se consumiu
e
a noite avançou, cada mestre de seu remo,
cada
marinheiro foi para o barco.
380
Os remadores ecovam os gritos de coragem dos barcos próximos
e
se movimentam no mar de acordo com o que fora instruído para cada um.
E
durante toda a noite os capitães dos barcos mantiveram
sua
poderosa frota navegando sem cessar.
A
noite estava indo embora e o exército dos helenos
385
não empreendeu nenhuma fuga secreta.
Mas
, quando a brilhante forma da aurora e
seus
cavalos brancos cobriram toda a terra,
primeiro
um sonoro grito de bons presságios é entoado
entre
os Helenos, e ao mesmo tempo um agudo
390
eco dele grita de volta nas pedras da ilha.
O
terror sobre todos nós bárbaros se abate
ao
nos virmos enganados em nossos planos. Pois não foi em fuga
que
os helenos então entoaram o sagrado peã,
mas
rumando para a luta com coragem e confiança.
395
e um trompete com seu som inflamou todos eles.
Imediatamente,
sob comando dos chefes, juntos em um mesmo impulso,
golpearam
o profundo mar salgado movendo os remos .
Depressa
toda a esquadra pode ser vista com clareza.
Primeiro,
à direita, vem na liderança uma ala disciplinada
400
e bem ordenada e depois, em seguida, toda a frota avançou
para
atacar, ao mesmo tempo podia ouvir vindo de todos eles ali
um
grande grito: “Oh filhos da Hélade, venham,
libertem
sua pátria, libertem
seus
filhos, suas mulheres, os santuários dos deuses ancestrais
405
e as sepulturas dos antepassados! Agora a batalha é por todos!”
De
nosso lado veio a resposta com clamor em língua
da
Persa. De modo algum havia tempo para hesitação.
Então
imediatamente um barco golpeou com seu bico de bronze
outro
barco. Uma nau grega começou
410
o ataque e despedaçou por completo a popa de um barco
fenício.
Logo cada barco se dirigia contra outro.
De
início o fluxo da armada persa
resistia.
Mas quando a multidão de nossos barcos em um estreito
foi
comprimida, sem que nenhum socorro
pudesse uns aos outros,
415
acabaram golpeando com seus bicos de
bronze os próprios
companheiros,
destroçaram todo o equipamento de navegação.
E
os barcos dos helenos em coordenação fizeram
um
círculo em volta e nos feriram. Os cascos dos barcos
viraram
para cima. E não mais era possível ver o mar
420
repleto que estava de destroços de barcos e homens mortos.
As
margens e os arrecifes estavam repletas de corpos.
Em
fuga desordenada todos os barcos remavam,
tantos
quantos eram os da frota dos bárbaros.
Mas
como se fôssemos atuns ou alguma pescada
425
eles nos golpeavam irados, nos fatiavam com remos partidos
e
restos do naufrágio. Ao mesmo tempo gemidos
e
gritos estridentes encheram o alto mar,
até
o olho negro da noite terminar com isso.
A
multidão de males, nem se contasse linha por linha
430
em dez dias eu poderia dar a ti um relato completo.
Pois
esteja certa disso, que nunca em um único dia
um
tão grande número de homens morreu.
A
relato do mensageiro integra os sons de morte e destruição que atravessa o
espetáculo: os lamentos e suspiros do coro, os animais sendo devorados no sonho
de Atossa. Como ponto de convergência,
este relato enfatiza uma guerra que se fundamenta no som, explicitando a
dramaturgia de Ésquilo. O inesperado
ataque grego começa na madrugada com homens invocando Apolo, assumindo sua
força guerreira. Essa invocação se espalha por tudo, por meio da intricada
geografia que fazer ressoar o grito e o canto performados. Às vozes dos homens
gregos, temos o som do instrumento musical: o salpinx, um aerofone antecessor do trompete,
como se vê na figura abaixo, um guerreiro tocando o instrumento[7].

Essa
esfuziante e estridente demonstração de força é seguida pelo ruidoso movimento
dos remos contras as águas. Seguindo vemos que os persas acordam de seu torpor
e gritam ordens de ataque em respostas às palavras dos gregos, que se encoraram
mutuamente com ordens para salvar seu povo e tradições. Então vem o tumulto da
guerra, os barcos batendo seus esporões de bronze, metalizando os gritos de
mortes que sucedem. Temos uma integração de diversas fontes sonoras em um mesmo
ambiente de ar, água e pedras, uma inesquecível audiocena. A alta taxa de
concentrar de referências sonoras neste trecho indica que de fato muitos sons
(vocais, instrumentais, efeitos) foram aqui de fato utilizados[8].
Ilustração da batalha de Salamina
Ilustração da batalha de Salamina
[1] A
imagem diz respeito à cintura modelada, com cintos e faixas que provocam esse
efeito de ‘cintura fina’. O foco no figurino é fundamental. Como vimos as
mulheres persas são mostradas com suas roupas negras
[2] CHANTRAINE 1968: 569.
[3] Este sonho foi a cena inicial do
experimento dramático-musical Salamina
(1929), do compositor e musicologista francês Maurice Emmanuel. V. DORF
2012.
[4] Link: http://www.liverpoolmuseums.org.uk/walker/exhibitions/romney/cartoons/cartoons11.aspx
.
[5] GARVIE 2O1O:11.
[6] Sobre a questão, v. BARRET
2002, DICKIN 2009,
[7]
Vaso grego do sec VI a.C – V
a.C. LINK: http://www.wikiwand.com/fr/Salpinx_(instrument)
. V. KRENTEZ 1993.
[8] GARVIE 2009: 193.



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