terça-feira, 21 de março de 2017

Primeiro episódio

Ao findar de cantar, o coro volta a marchar, deslocando-se, para anunciar a chegada da rainha. Este módulo anapéstico marca o fim da centralidade do coro e o início da longa sequência em que vai contracenar com Atossa, mãe de Xerxes e viúva de Dario, o rei anterior e já morto, e com o mensageiro, que traz notícias que todos já sabemos.
CORO
140 Mas venham, Persas, tomem assento
neste antigo lugar
e em profundos e atentos pensamentos
nos lancemos. A necessidade é urgente.
Quais são as ações do rei Xerxes
filho de Dario?
O arco esticado está vencendo
ou a poderosa lança
pontuda tem  prevalecido?
150 Mas aqui chega, como luz dos olhos
dos Deuses, a mãe do rei
e rainha minha. Prostro-me
e todos com palavras de saudação
devem se dirigir a ela.

A rainha Atossa chega com sua carruagem e rico figurino, como se vê na saudação que o corifeu realiza

155 Oh mais alta soberana das vestiacinturadas mulheres da Pérsia[1]
idosa mãe de Xerxes, salve oh esposa de Dario.
Tanto esposa do deus dos persas quanto mãe que gerou um deus,
mesmo que uma antiga divindade se voltasse agora contra nossa armada.

Pela primeira vez entramos agora no reino da fala. Até o coro recitou, cantou e danço. A partir do primeiro episódio, temos agentes que emitem blocos de fala e/ou contracenam verbalmente com agentes. Para esta modalidade de performance, a convenção é que um membro do coro, o corifeu, assuma a função de articulador textos não corais. Temos pois um artista versátil que surge o líder do coro, como o porta-voz desse coro, versátil por parcipa de ambas e específicas tradições performativas: a do narrativa, de tradição homérica; e a das danças, das lírica coral. O resto do coro não irá exercer a palavra metrificada em trímetros iâmbicos. Isso demonstra que diferencial dessa figura que pertence ao coro mas dele se distingue. Corifeu, koryphaîos, de  κορυφή, que significa o que acima, na extremidade, a cabeça. Logo isso se associa a um destaque, ao que é melhor, essencial[2].  Ao contracenar com os agentes não corais, o corifeu se afasta do coro e estabelece novas relações espaciais. A partir da entrada dos trímetros iâmbicos, o coro transforma-se em uma ativa audiência no espetáculo acompanhando as trocas de falas entre o corifeu e outros agentes. De fato, o coro se desdobra entre a audiência em cena e o corifeu.  Para tanto, inicia-se um conjunto de reposicionamentos em cena: temos 1- um espaço para o coro observar e ser observado; 2- espaços para cada um dos demais agentes em contracenação direta, sejam eles um membro do coro que performa versos de agentes não corais e os agentes não corais.  E é este espaço que será o foco de interesse da audiência até nova intervenção coral, ou seja até que o coro invada este espaço com seus sons e movimentos.

Em resposta à saudação do corifeu, a rainha  apresenta dois relatos, um sonho e uma visão:

ATOSSA
176 Eu tenho com freqüência me entregado de noite a numerosos sonhos
desde quando meu filho preparou seu exército
e partiu querendo destruir a terra dos jônios.
Mas ainda tal como este sonho dessa última noite
180 nada tão vívido eu tinha visto. Vou contar para vocês.
Duas mulheres muito bem vestidas aparecerem para mim,
uma vestida com túnicas persas
e a outra, por sua vez, com vestidos dóricos,  visivelmente
destacam- se  por ser mais altas que as pessoas de hoje
185 e pela beleza sem mácula.  São irmãs de uma mesma
raça. Por sorteio, uma vivia em sua pátria, Hélade,
e a outra na pátria dos bárbaros.
Um conflito entre elas nasceu, como me pareceu
ver. Quando meu filho soube disso,
190 tentou contê-las e acalmá-las. Ele as amarrou juntas
em sua carruagem e afivelou seus pescoços em
um  jugo. Uma delas, exaltada em seus vestidos,
abocanhava as rédeas com submissão,
enquanto a outra destroça com as mãos
195 os arreios do carro, e violentamente os arremessa
sem os freios e parte ao meio o jugo.
Meu filho cai. E seu pai Dario coloca-se
perto dele, com pena. Quando Xerxes vê seu pai
faz em pedaços as roupas do próprio corpo.
200 Estas coisas afirmo ter visto durante a noite.
Mas quando me levantei mergulhei minhas mãos no belo
fluxo de águas de uma fonte e me dirigi ao altar
com objetivo de sacrifícios ofertar. Aos deuses que afastam desgraças
quis fazer libações, a eles estes ritos cumprindo o que  era devido.
205 Mas então eu vejo uma águia em fuga para o altar
de Febo: fiquei estarrecida sem voz pelo medo, amigos.
Em seguida vejo um falcão batendo as asas lançar-se
contra a águia, dilacerando com as garras a sua cabeça.
Não resta a águia outra coisa senão curvada de medo oferecer
seu corpo. A mim tais fatos são terríveis de ver
como para vocês  escutar. Pois vocês sabem bem que se meu filho
for bem sucedido poderá ser um homem digno de admiração,
mas se se sair mal não será considerado justificável pela comunidade.
Assim sendo,  tendo se salvado, ele continuará como soberano desta terra.

Este longo bloco de falas  projeta para a audiência imediata e para os assentados no teatro duas poderosas cenas audiovisuais se relacionam com a guerra em andamento e os prognósticos, os sinais de como as coisas poderão se resolver. Seja dormindo à noite, seja sob os raios de sol, a rainha se encontra atormentada por paralelas imagens “são terríveis de ver/ como para vocês  escutar”[3].  
O pintor inglês Gerge Rommey (1734-1802) assim ilustrou o primeiro sonho[4]:

 Ambos os sonhos indicam uma orientação não muito favorável aos persas e, especialmente, a Xerxes. O jugo, a sumissão da Europa à Ásia não se realiza, e a queda do líder da campanha persa é indicada. A poderosa imagem do rei em farrapos aqui mencionada será cumprida na cena final do espetáculo.  A águia, ave relacionada a Zeus “e emblema dos reis Persas”, foge do falcão, “ave associada aos mais grego dos deuses, Apolo.[5]
 Como podemos perceber, a peça projeta para o espectador diversos sons e imagens de eventos parcialmente acontecidos antes da peça e que terão lugar em cenas adiante.
Núcleo desse sonho ainda é a síntese familiar: aqui estão reunidos a mãe que sonha, e rei-pai Dario e o filho Xerxes. É o único momento em que estão juntos. O drama político passa pelo drama familiar, pois é a sucessão dinástica que garante a sobrevivência do Império. As decisões dos integrantes dos membros da monarquia é que vão levar adiante ou não o reino. Dessa forma, Ésquilo transita em diversos núcleos temáticos e institucionais. Na realidade, nada está distinto: a ordem pessoal convive com a ordem pública. A trama familiar desdobra a trama geopolítica. Há uma multiplicação de referências por meio da sobreposição de contextos.
A entrada da figura do mensageiro acaba por revelar aquilo que antes era presságio e agouro: o que o coro cantou e dançou e a rainha viu e ouviu em seus sonhos e visões agora é manifesto da plena narrativa dos fatos.
O anônimo mensageiro, que não relaciona com a Casa Real nem com os seus dignatários representantes, também anônimos, restringe-se à função de relatar, de contador de histórias, de conectar o mundo atual da cena a eventos que se deram em outros espaços e tempos. Essa restrição dramático-narrativa é, paradoxalmente, a atrativa singularidade do mensageiro[6]. Nos caso de Os persas ele rouba a cena.  Temos um tipo ator que habilidades bem singulares. Ele não canta, nem dança. Mas suas longas falas se tornam o centro da atenção da audiência em cena e fora de Cena. O show muda: temos agora um rapsodo. A Rainha, o Corifeu e o Coro passam a segundo plano, a platéia. A breve e intensa duração da performance do Mensageiro (249-531) contrasta com tudo que fora performado até aqui e tudo que será colocado em cena será uma resposta aos aterradores anúncios.  
E o que ele narra?

MENSAGEIRO
Oh cidadelas de todo o continente da Ásia!
250 Oh terra dos Persas, depósito de muitas riquezas!
Por um único golpe se deu a destruição de teus muitos
bens! A flor dos persas caiu e se foi!
OIMOI, é terrível ser o primeiro a trazer uma mensagem terrível.
Mesmo assim é necessário explanar toda a catástrofe,
255 Persas. Pois todo o exército dos bárbaros acabou de morrer.


A técnica é a seguinte: o relato da derrota persa é conduzida em partes. Primeiro há uma antecipação do resultado da narrativa, que é o resumo dos fatos – as tropas em combate foram aniquiladas, a invasão foi detida por uma fragorosa derrota. Há a reação do coro que se organiza em pares estróficos inicia sua reação ao impacto das informações. A rainha sai de seu silêncio para pedir mais detalhes, em especial novidades acerca de seu filho Xerxes. Então o mensageiro inicia o detalhamento da desgraça persa, começando por um catálogo de comandantes mortos (302-330) ,ecoando a lista cantada pelo coro no párodo, e o número das embarcações perdidas (336-347). A impressão é  de que, sendo o mensageiro um soldado que acaba de sair front, que chega correndo em cena, ele comece a relatar os últimos acontecimentos até tomar fôlego e apresentar uma narrativa organizada de tudo que houve.
A partir desses momentos iniciais, temos um grande bloco narrativo (353-432), o momento em que o ator-rapsodo brilha. Aqui se apresenta uma vibrante e ampla sucessão de eventos. Se por um lado, o Mensageiro manifesta uma autoridade por ter observado o que relata - “De fato então eu estava presente e não ouvi palavras de outros,/ Persas, e poderia relatar os males lançados contra eles (266-267).” - , de outro há uma certa onnicência, uma presença mais que humana, que como uma câmera nos mostra a arte do narrador dramatizado:

MENSAGEIRO
A desgraça inteira começou, oh senhora, quando
de algum lugar surgiu uma vingativa e maligna divindade.
355 Um homem heleno veio da frota ateniense
e disse estas coisas para o teu filho Xerxes:
quando a escuridão da negra noite cair
os helenos não vão permanecer aqui, mas ,saltando
sobre os assentos dos barcos, tentam salvar suas vidas
360 através de fuga cada um para diferentes lugares sob a escuridão.
Xerxes quando ouviu isso, não compreendendo que este homem
Heleno o enganava, nem a repulsa dos deuses para com ele,
de imediato a todos os seus almirantes proferiu estas ordens:
quando  o sol deixar de aquecer a terra
365 com seus raios e a escuridão se apossar das regiões celestes
eles deverão ordenar a coluna de barcos em três fileiras
para guardar as saídas e as passagens dos estreitos do mar  
enquanto outros barcos irão circundar toda a ilha de Ajax.
Se os helenos escaparem de um destino terrível
370 por com seus barcos encontrando um meio secreto de fuga,
a regra estabelecida a todos  almirantes vão perder a cabeça.
Isso foi o que ele disse com coração cheio de confiança
pois não compreendeu as intenções dos deuses.
Os almirantes, em submissão e em ordem
375 prepararam o jantar.  Cada marinheiro
prendeu o remo no estaca do barco, pronto para ser usado.
Quando a luz do sol se consumiu
e a noite avançou, cada  mestre de seu remo,
cada marinheiro foi para o barco.
380 Os remadores ecovam os gritos de coragem dos barcos próximos
e se movimentam no mar de acordo com o que fora instruído para cada um.
E durante toda a noite os capitães dos barcos mantiveram
sua poderosa frota navegando sem cessar.
A noite estava indo embora e o exército dos helenos
385 não empreendeu nenhuma fuga secreta.
Mas , quando a brilhante forma da aurora e
seus cavalos brancos cobriram  toda a terra,
primeiro um sonoro grito de bons presságios é entoado
entre os Helenos, e ao mesmo tempo um agudo
390 eco dele grita de volta nas pedras da ilha.
O terror sobre todos nós  bárbaros se abate
ao nos virmos enganados em nossos planos. Pois não foi em fuga
que os helenos então entoaram o sagrado peã,
mas rumando para a luta com coragem e confiança.
395 e um trompete com seu som inflamou todos eles.
Imediatamente, sob comando dos chefes, juntos em um mesmo impulso,
golpearam o profundo mar salgado movendo os remos .
Depressa toda a esquadra pode ser vista com clareza.
Primeiro, à direita, vem na liderança uma ala disciplinada
400 e bem ordenada e depois, em seguida, toda a frota avançou
para atacar, ao mesmo tempo podia ouvir vindo de todos eles ali
um grande grito: “Oh filhos da Hélade, venham,
libertem sua pátria, libertem
seus filhos, suas mulheres, os santuários dos deuses ancestrais
405 e as sepulturas dos antepassados! Agora a batalha é por todos!”
De nosso lado veio a resposta com clamor em língua
da Persa. De modo algum havia tempo para hesitação.
Então imediatamente um barco golpeou com seu bico de bronze
outro barco. Uma nau grega começou
410 o ataque e despedaçou por completo a popa de um barco
fenício. Logo cada barco se dirigia contra outro.
De início o fluxo da armada persa
resistia. Mas quando a multidão de nossos barcos em um estreito
foi comprimida,  sem que nenhum socorro pudesse uns aos outros,
415 acabaram  golpeando com seus bicos de bronze os próprios
companheiros, destroçaram todo o equipamento de navegação.
E os barcos dos helenos  em coordenação fizeram
um círculo em volta e nos feriram. Os cascos dos barcos
viraram para cima. E não mais era possível ver o mar
420 repleto que estava de destroços de barcos e homens mortos.
As margens e os arrecifes estavam repletas de corpos.
Em fuga desordenada todos os barcos remavam,
tantos quantos eram os da frota dos bárbaros.
Mas como se fôssemos atuns ou alguma pescada
425 eles nos golpeavam irados, nos fatiavam com remos partidos
e restos do naufrágio. Ao mesmo tempo gemidos
e gritos estridentes encheram o alto mar,
até o olho negro da noite terminar com isso.
A multidão de males, nem se contasse linha por linha
430 em dez dias eu poderia dar a ti um relato completo.
Pois esteja certa disso, que nunca em um único dia
um tão grande número de homens morreu.

A relato do mensageiro integra os sons de morte e destruição que atravessa o espetáculo: os lamentos e suspiros do coro, os animais sendo devorados no sonho de Atossa.  Como ponto de convergência, este relato enfatiza uma guerra que se fundamenta no som, explicitando a dramaturgia de Ésquilo.  O inesperado ataque grego começa na madrugada com homens invocando Apolo, assumindo sua força guerreira. Essa invocação se espalha por tudo, por meio da intricada geografia que fazer ressoar o grito e o canto performados. Às vozes dos homens gregos, temos o som do instrumento musical:  o salpinx, um aerofone antecessor do trompete, como se vê na figura abaixo, um guerreiro tocando o instrumento[7].




Essa esfuziante e estridente demonstração de força é seguida pelo ruidoso movimento dos remos contras as águas. Seguindo vemos que os persas acordam de seu torpor e gritam ordens de ataque em respostas às palavras dos gregos, que se encoraram mutuamente com ordens para salvar seu povo e tradições. Então vem o tumulto da guerra, os barcos batendo seus esporões de bronze, metalizando os gritos de mortes que sucedem. Temos uma integração de diversas fontes sonoras em um mesmo ambiente de ar, água e pedras, uma inesquecível audiocena. A alta taxa de concentrar de referências sonoras neste trecho indica que de fato muitos sons (vocais, instrumentais, efeitos) foram aqui de fato utilizados[8].

Ilustração da batalha de Salamina






[1] A imagem diz respeito à cintura modelada, com cintos e faixas que provocam esse efeito de ‘cintura fina’. O foco no figurino é fundamental. Como vimos as mulheres persas são mostradas com suas roupas negras
[2] CHANTRAINE 1968: 569.
[3] Este sonho foi a cena inicial do experimento dramático-musical Salamina (1929), do compositor e musicologista francês Maurice Emmanuel. V. DORF 2012.
[4] Link: http://www.liverpoolmuseums.org.uk/walker/exhibitions/romney/cartoons/cartoons11.aspx .
[5] GARVIE 2O1O:11.
[6] Sobre a questão, v. BARRET 2002,  DICKIN 2009,
[7] Vaso grego do sec VI a.C – V a.C.  LINK:  http://www.wikiwand.com/fr/Salpinx_(instrument) .  V. KRENTEZ 1993.
[8] GARVIE 2009: 193.

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