quinta-feira, 16 de março de 2017

modos de articulação

Falando de teatro na Antiguidade, estamos lidando com dramaturgia musical, com teatro musicado.
Havia partes da peça que eram cantadas/dançadas. e outras que eram cantadas.

PARTES
METRO
MODO DE ARTICULAÇÃO
AGENTES
ACOMPANHAMENTO MUSICAL
1-Prólogo
Trímetro Iâmbico
Falar[1]
Personagens não corais
Não
2-Párodo
1-anapestos
2-metros diversos
1-Entoar
2- Cantar/dançar
Coro
Sim
3-Episódios
Trímetro Iâmbico
Fala
Personagens e corifeu
Não
4-Estásimos
metros diversos
Cantar/dançar
Coro
Sim
5-Mistos (Canto amebeu, duetos, Kommós/ lamentação, epirremas[2])
metros diversos
1-Falar
2-Cantar/dançar
Coro e personagens não corais
Sim



[1] “Falar” aqui significa um tipo de performance verbal com ritmo e organizada das palavras, uma fala estilizada. Em Ésquilo isso é bem evidente. Não é uma fala cotidiana: ha limites relacioados às escolhas das palavras e sua ordem em cada verso. Tal fala versificada, com um verso contínuo, de mesmo tipo, retoma tradições como a do performer narrativo (contador de histórias) da poesia épica.
[2] 1- Canto amebeu, de amoibaios, ou mudança, alternação, usado para compreender a poesia bucólica e trocas e disputas entre cantores. 2- Duetos ou encontros é nomenclatura proposta por ROSENMEYER 1982 para traduzir contracenações entre agentes corais e não corais. 3- Epirrema, composição epirremática, diálogo lírico-epirremático são expressões que a partir da métrica moderna (sec. XIX) procuram traduzir a alternância entre canto e fala. 4- Kommós, relaciona-se a um canto de lamentação partilhado entre coro e agentes não corais.  

Em negrito estão as partes exclusivamente relacionadas à atividade coral. Em Ésquilo, como o comediógrafo Aristófanes (446 a.C -386 a.C.) nos informa, após o início da peça, segue-se uma sequência de quatro seções com performance coral, sem participação dos agentes não corais, constituindo um eixo de referência para a platéia[1].  O termo ‘estásimo’ vincula-se ao fato de o coro estar ali de pé, firme, estável em grupo[2].
O segundo eixo, em itálico, é o das partes não corais, no qual há contracenação entre agentes sem mediação de canto, dança e acompanhamento musical.
Com isso, vemos que a base de organização de uma tragédia ateniense está nessa sucessão e alternância de atividades corais (estásimos) e outras não corais (episódios).
Há três maneiras básicas de perceber e compreender estas distinções: o metro ou distribuição das palavras em organizações prosódicas e rítmicas específicas; a compreensão das seções ou partes pelas quais o espetáculo se organiza; rubricas internas, ou referências que os agentes fazem a respeito de suas atuações. Tais informações vão ser providenciadas no comentários individual das peças.
Mas as coisas podem ser um pouco mais complicadas que a oposição e diferenças entre cenas cantadas/dançadas e cenas não corais. Dentro dos episódios podemos ter momentos em que se dá um estranho diálogo, uma verdadeira colisão de forças: temos ao mesmo tempo contracenando ora um coro que canta e um agente não coral que ‘fala’, ora um coro que ‘fala’ e um agente não coral que entoa e canta. Assim, rompe-se a aparente simetria entre os dois eixos articulatórios (canto X fala), promovendo uma sobreposição de performances com orientações diversas.
Ou seja, tanto em sequência quando em sobreposição temos a imagem de um espetáculo com vários espetáculo dentro: quem fosse ao Teatro de Dioniso iria se deleitar com narrativas, com danças, com canções, com músicas, com a interpretação dos agentes. A diversidade de recursos utilizados se materializa nas diferentes partes e seções do espetáculo.
De volta para nossa tabela, tal diversidade pode ser compreendida quando se esclarece os itens 1 e 2. Temos dois termos relacionados com começos nas tragédias. Antes de tudo, é preciso ter em mente, que havendo dois tipos de começos, tal momento de estabelecimento do contato com a audiência era muito relevante. As diversas outras partes possuem o mesmo nome para suas diversas ocorrências. Assim, podemos ter quatro episódios ou quatro estásimos e todos eles constinuarão como episódios e estásimo. Mas um prólogo ou um párados – e um êxodo, do qual já falaremos – são únicos. Logo, são únicos e distinguíveis os modos de se começar uma peça. É precis marcar bem o começo. E se começa ou com agentes não corais contracenando em cena (prólogo) ou inicia-se com uma entrada do coro (párodo).
Assim, é tão relevante começar quanto variar o modo de se iniciar o espetáculo: Sete contra Tebas, Agamênon, Coéforas, e Eumênides, iniciam-se com seções não corais, enquanto que o Os persas e  As Suplicantes abrem com coros.
A importância dos inícios se liga, entre outras coisas, ao contexto mesmo de representação: como vimos, o Teatro de Dioniso era um espaço integrado no ambiente da cidade de Atenas. Era caminho para se subir para a Acrópolis. Sentado, o espectador podia contemplar a cidade e o céu. Nesse sentido, o dramaturgo deveria trabalhar com a continuidade da participação da audiência. A ênfase em formas de início é um modo de enfrentar a questão do desligamento recepcional. Como o espetáculo da dramaturgia ateniense é modular, dividido em partes ou seções com limites bem identificáveis (ordem relativa, tipos de performance, sonoridade/metros), um início bem marcada funciona como horizonte de expectativas: o início é tanto o início da seção quanto de toda obra. Se a seção de abertura assim se distigue por enfatizar duplamente seu início, todas as outras seções também se marcar como novos inícios.
Como isso, dramaturgias modulares nos induzem a produzir fortes marcas de estabelecimento de contato que são renovadas: o espetáculo inicia-se diversas vezes a cada nova seção.
Esta lógica também se aplica ao fim. Seguindo a tabela acima, como percebemos que há um único termo para a conclusão do espetáculo, êxodo, que está relacionado com a saída do coro.
Mas mesmo guardando esta definição, no êxodo, pelo menos em Ésquilo, outras coisas acontecem: lamento generalizado (Os Persas e Sete contra Tebas), procissão celebratória (Eumênides, As Suplicantes), Suspense/quadro vivo (Coéforas), saída em silêncio (Agamenon). A conclusão do espetáculo está diretamente relacionada com o encademento de eventos dentro da trilogia e com a construção da resposta emocional. De qualquer modo, marca-se um desligamento da audiência em relação ao mundo encenado.
Diante disso, inícios e fins, conexões e desligamentos do nexo entre a audiência e o espetáculo, são premissas para dramaturgia envolvida em uma situação interativa frontal dentro de um ambiente diversificado.  Ao mesmo tempo, inícios e fins projetam e reprojetam expectativas, construíndo e reelaborando a participação da audiência no espetáculo.  Ésquilo soube bem como trabalhar tais jogos recepcionais, indo de uma intensificação de emoções angustiantes, como em Os Persas, até inversões de sensibilidades opostas, como em Coéforas e As Suplicantes.


[1] As Rãs, v. 914-915. A tradição coral precede os concursos dramáticos das Grandes Dionísias. A dramaturgia ateniense se apropriou dessa tradição multiforme e a transformou. Entre as modalidades (ou gêneros líricos) apropriadas estão: 1- o Peã, ou coro de jovens do sexo masculino celebrando Apolo; 2- Epinício, quando se celebra uma vitória atlética  ou  no campo de batalha. 3- Partenéia, coro de jovens do sexo feminino em seus ritos de passagem; 4- Himeneu, celebração dos diversos momentos dos rituais de um casamento; 5- Trenódia, lamentação fúnebre pelos mortos. V. SWIFT 2010.
[2] CHANTRAINE 1968:1044. A derivação de sentido para canto estacionário, proposta por Liddlell-Scott-Jones não leva em consideração a complexidade do espetáculo trágico ateniense e a dinâmica coral. Como veremos, o coro produz muito movimento e muito som.

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