terça-feira, 21 de março de 2017

Conclusão

 Trazendo os mortos para a cena

Se o peã, o canto de vitória foi dos gregos e ressoou na batalha, chegando ao teatro, para os Persas resta contar seus mortos. Ésquilo avança nesse sentido, ampliando a indentidade entre Império Persa, Destruição e Morte ao propor a cena da invocação de Dario.
O ritual de consulta aos mortos (necromancia), a partir do modelo em Homero, parece ter sido um recurso dramático bem utilizado por Ésquilo, como se vê no mal-sucedida invocação de Agamenon, em Coéforas, e no fantasma de Clitmnestra, em Eumênides[1].  Em comédia temos entre outros o grande exemplo de Aristófanes em As rãs, na qual Dioniso vai se no reino dos mortos se consultar com Ésquilo e Sófocles para salvar Atenas,após o desastre da guerra do Peloponeso.  
Em As Rãs a cena com Dario é deste modo referida:  

ÉSQUILO
1026 Então produzindo depois disso Os persas ensinei a querer
vencer sempre os inimigos, uma grande realização da qual me honro.
DIONISO
Me diverti muito ao ouvir o morto rei Dario
e o coro batia palmas assim e gritava ‘IAUOI’ .

De fato,  a cena da necromancia se organiza em torno do coro com seus rituais e a irrupção do rei morto. A rainha fica em segundo, cumprindo com rituais específicos, como derramamento de oferendas.
O coro em canto estrófico assim performa a invocação:


ESTROFE 1
Mas ah meu abençoado rei, semelhante a um deus, me ouça,
635 Precisarei em minha bárbara linguagem
emitir evidentes, multivariadas, incessantes, estridentes palavras?
Minha completa miséria e dor
vou aos prantos gritar?
Será que ele me ouve lá debaixo?

ANTIESTROFE 1
Mas , oh Terra e outros líderes das profundezas,
este tão altivo espírito
permite vir dos teus domínios, o deus dos persas nascido de Susa.
Mande-o para cima.
O chão da Pérsia
não  encobriu  alguém assim.

ESTROFE 2
Ah, ele foi amado, amada foi a colina de seu enterro,
650 que abriga um homem de caráter louvável.
Hades, acompanhe sua subida, envia para cima, Hades,
o divino rei Darios!         E Ê

ANTIESTROFE 2
Pois ele nunca fez morrer os seus homens
através das desgraças fatais da guerra.
655 Divino conselheiro é como foi celebrado pelos persas, divino conselheiro
ele foi, após ter bem conduzido a armada.  E Ê

ESTROFE 3
[2], antigo Xá, venha, se aproxime!
Venha ao alto topo da colina da tua sepultura,
660 erguendo as chinelas tingidas de açafrão(amarelo) sobre teu pé,
mostrando a frente de tua tiara real.
664 Venha benigno pai Dário!   OI

ANTIESTROFE 3
Venha ouvir terríveis  sofrimentos recentes.
Senhor dos senhores apareça!
Alguma neblina estígia[3] paira sobre nós
670 pois todos os jovens homens recentemente morreram.
Venha, pai Dario, que nunca nos feriu.  OI

ÉPODO
AIAI, AIAI!
Oh tu que morrendo foi muito lamentado por seus amigos,
675 poderoso senhor, poderoso, qual é a razão, qual a razão
para acontecer este duplo fracasso?
Todas os barcos trirremes dessa terra foram destruídos
680 e há mais barcos, não ha  mais barcos.

Tirando o épodo, um canto sem estrofe que conclui a invocação, a performance do coro se faz em jônios a minore, como vimos na seção estrófica do párodo, marcando a dimensão étnica do coro.  Não se trata de uma atividade de canto apenas: o coro se aproxima a partir das estrofe 3 da sepultura de Dario e, de joelhos, bate o chão e tenta furar o solo.
Dario irrompe de baixo para cima. Ele fura a terra que está em seu túmulo.  Sua aparição magnetiza os olhares de todos em cena e na audiência. O morto-vivo, o grande rei com suas roupas e símbolos de poder levantando poeira e susto- maravilha!  Qualquer que tenha sido o modo pelo qual se encenou a entrada de Dario, ela tornou-se emblemática para a dramaturgia ateniense, tornando-se depois uma cena típica no século IV a. C.  Com Sêneca, os fantasmas depois chegaram até Shakespeare e daí, nunca mais pararam de nos assombrar[4].
Mas, mais que o efeito cênico, temos o argumento: Dario vem para o mundo dos vivos, para ratificar um modo helênico de ver e celebrar a guerra contra Os Persas.  Após censurar a arrogância de seu filho Xerxes, que não observou os ditames délficos, relacionados a restrições a excessos e respeito à ordem natural.
Assim, o fantasma de Dario é um artifício dramático que ratifica o envolvimento do espetáculo com a celebração helênica contra os povos da Ásia.  Trazer para a cena os acontecimentos históricos acaba por colocar o teatro em uma nova dimensão: podemos nos valer de obras teatrais para fortalecer o vínculo comunitário, trocando os sofrimentos por alegrias, alterando o alvo do desastre. Se no passado fomos invadidos, nossas casas, templos e construções destruídas, agora quem nos humilhou é humilhado, é abatido por nós. E seus mortos são eloquentes: reafirmam nossa vitória. A desgraça deles é nossa alegria. Em sua derrota nos enaltecemos. 
Esse discurso de inimigo na boca de Dario deixa o coro perplexo. De nada adianta trazer o antigo rei para dar conselhos. Ele parece pisar sobre os abatidos.

CORO
786 O que então, senhor Dario? Para onde a conclusão das tuas palavras
conduz ? Depois dessas coisas como ainda o povo
da Pérsia  poderia fazer algo melhor no futuro?
DARIO
790 Não voltando a invadir o território dos  helenos
mesmo se a armada Persa for muito poderosa.
Pois o próprio solo se torna aliado deles.

Sai o morto-vivo entra outro: Xerxes.  A dramaturgia de Os Persas se organiza no adiano retorno do jovem rei à casa real.  Anunciado no párodo ele só chega completamente na cena de conclusão. Ésquilo aqui se vale do clássico tema do retorno para casa (nostos) em que heróis após batalhas enfrentam novas dificuldades para chegar em sua terra natal[5].
Xerxes retorna em andrajos, como sua mãe sonhara, carregando uma aljava vazia de flechas:

CORO
1016 Há algo dos persas que não foi destruído, oh homem de grandes desastres?
XERXES
Não está vendo estes restos de minhas vestes?
CORO
Vejo, vejo bem.
XERXES
E esta aljava...
CORO
O que isso que você diz ter sobrevivido?
 XERXES
1020 depósito de flechas?
CORO
Realmente pouco de tão muito.
XERXES
Fomos dizimados os que nos protegiam.
CORO
1025 O povo da Iônia não foge de guerra.

O trecho acima é parte do lamento que é partilhado entre o coro e Xerxes, retomando metros já apresentados antes – anapestos e jônio a minore. Xerxes apenas canta – ele é o único agente não coral de todo o restante repertório da dramaturgia ateniense que não se vale de versos para contracenação verbal e para blocos de fala[6]. Ele não pode argumentar, debater, relatar – Xerxes se confina nos limites de sua agonia de sem fim, ser o derrotado líder de um poderoso exército massacrado.
Para o público, a infelicidade com que Xerxes entra em cena e com a qual ele sai acompanhado pelo coro é impulso para reforçar o ânimo helênico.  Há pois uma interação assimétrica entre as figuras e suas catástrofes em cena e o audiência: não uma uma partilha de pathos, uma identidade entre os horizontes volitivo, cognitivo e emocional do público e  os horizontes dos bárbaros.  Amai vosso amigos, feri vossos inimigos – nunca o mundo pareceu tão coerente[7].



[1] Odisséia 11.  Sobre o tema, v. OGDEN 2001.  Ésquilo teria usado este recurso em outras de suas peças, das quais agora temos apenas os fragmentos como Psicagogos, Penélope, Recolhedores de ossos .   V. BARDEL 2005.
[2] No original temos uma palavra frígia (ballên) para nomear ‘rei’. Para manter o jogo, vali-me da título dados aos imperadores e monarcas do Irã ( Pérsia).
[3] Relacionada ao Estige, um dos rios do Tártaro, mundo subterrâneo.
[4] v. LUCKHURST & MORIN 2014.
[5] ALEXOPOULOU 2009.
[6] HALL 1996: 169.
[7] Jogo com o título do livro de Mary Blundell  Helping Friends and Harming Enemies.

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