terça-feira, 21 de março de 2017

Entrada do coro

A entrada do coro
Em Os Persas essa ampla presença do coro manifesta a dramaturgia musical ali atualizada.  Ésquilo teria de elaborar e ensaiar as melodias, as letras e os passos para os doze integrantes do coro. Os acontecimentos já eram conhecidos: estavam na memória de todos os presentes no teatro a derrocada persa oito anos antes. A cidade se reconstruía: em uma estratégia de guerra, Atenas fora deixada para os invasores, que queimaram e destruíram construções públicas. Ali no sopé da Acrópole todos estavam reunidos novamente para celebrar a vitória sobre o inimigo oriental.
Ora, tendo de se valer de uma estrutura formal conhecida e de uma memória recente em processo de mitificação grande era o desafio de Ésquilo.
E o que ele fez? No lugar de abrir a peça com um prólogo falado, já anunciando uma fato conhecido pela audiência, como Frínico o fez em As Fenícias, Ésquilo coloca em cena um coro de anciões, representantes dos persas, que espera notícias da armada persa. A dramaturgia vai trabalhar agora com eventos sutis: expectativas, esperanças, sonhos.  Ou seja, os agentes em cena se veem movidos por acontecimentos fora de cena, não visíveis diante da audiência. O público observa o efeito desses acontecimentos extra-cênicos nas figuras que estão presentes no espaço de contracenação. O ausente, o não visível impacta aqueles que vemos e ouvimos.
Este ausente se materializa nos sons dos passos do coro no teatro, ao som de um aulos, que se parece com o do oboé. O párodo aqui possui duas partes: uma marcha em passos binários (1-64), com alternância dos pés, chamada de marcha anapéstica, e uma performance organizada, registrada em estrofes paralelas (65-139).
O tempo dessa marcha é o desfile de entrada do coro até ocupar a orquestra, área central da arena.  Uma transcrição métrica e em notação musical dos primeiros versos seria assim:  
A- TEXTO EM GREGO, SEGUIDO DE TRADUÇÃO

1 Τάδε μὲν Περσῶν τῶν οἰχομένων
 Estes, dos Persas que partiram
Ἑλλάδ’ ἐς αἶαν πιστὰ καλεῖται, 
para a terra da Hélade, chamam de Fiéis,
καὶ τῶν ἀφνεῶν καὶ πολυχρύσων
do rico e  cheio de ouro
ἑδράνων φύλακες,
palácio guardiães somos,
κατὰ πρεσβείαν οὓς αὐτὸς ἄναξ
por nossa idade avançada o próprio Senhor
5 Ξέρξης βασιλεὺς Δαρειογενὴς
Xerxes rei, filho de Dario,
εἵλετο χώρας ἐφορεύειν.
nos escolheu para supervisionar o país.

B- TEXTO EM GREGO TRANSCRITO EM SINAIS MÉTRICOS[1]

Τά-δε μὲν Περ-σῶν τῶν οἰ-χο-μέ-νων 
 U  U  -     -        -       -    -   U  U   -
Ἑλ-λά-δ’ ἐ-ς αἶ-αν πισ-τὰ κα- λεῖ-ται
 -    U   U  -    -   -    -     U U    -     -
ἑ-δρά-νων φύ-λα-κες
U U   -       U   U  -
Κα-τὰ πρεσ-βεί- α -ν οὓ-ς αὐ-τὸ-ς ἄ-ναξ
 U  U    -       -      -   -       -      U  U   -
Ξέρ-ξης βα-σι-λεὺς Δα-ρει-ο-γε-νὴς
 -      -     U  U   -       -   -     U U  -
εἵ-λε-το χώ-ρα-ς ἐ-φο-ρεύ-ειν
-   U  U  -    -    U    U     -    -

C- Texto grego com notação musical tradicional



Como vemos o padrão binário predomina: os anapestos são pés métricos que se combinam como tijolos em grupos de quatro unidades de duração com diversas formas ou padrões: a) UU - ; b)  - -  ; c) –UU; d) UUUU.  O primeiro verso apresenta dois padrões, o típico a) e uma variação, que é chamada de espondeu ( -- ).
O que está no texto grego e foi transcrito em sinais de duração e depois de notação musical se refere ao movimento dos pés. O padrão binário nos indica usar os dois pés em alternância:  pé esquerdo/ pé direto. Então, se vou começar pisando com o pé esquerdo, apoio o pé direito e levanto o esquerdo. Aí começa a marcha a anpéstica. Em nosso caso eu piso o chão na primeira sílaba e demoro um pouco a troca de pé, a segunda batida de pé. A segunda batida de pé se seguirá aproximada na metade da duração da primeira batida. Mas como vemos são duas batidas breves (UU), então alternamos os pés rápido. Traduzindo: batida de pé direto com espera do pé no chão, alternância rápida de batidas pé esquerdo e pé direito. Depois temos duas longas (--), ou batida de pé esquerdo contra o chão com espera do pé no chão, seguido de nova batida do pé direto esquerdo contra o chão também com espera. E assim vamos. Sempre notar que temos o movimento de um pé que bate no chão e o outro que se ergue. Isso sem levar em conta a força, a intensidade da batida. Se considerarmos os acentos no texto, devemos ainda marcar mais fortemente algumas pisadas que outras.

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Direito
Esquerdo
Direto
Esquerdo
Direto
Esquerdo
Direito
Esquerdo
Direito
Esquerdo
-
U
U
-
-
-
-
U
U
-
Forte



Forte



Forte




Ou seja, mesmo que a marcha anapéstica seja aparetemente simples, com tendência à regularidade, é possível introduzir algumas variações de intensidade indicando informações outras que a mecânica temporal. Afinal, é uma movimentação de um grupo de agentes e não de robôs. Com as a convergências e divergêntes entre os acentos de intensidade e ordens temporais comportamentos e expectativas podem ser detalhados na sucessão dos passos.  
O conteúdo dessa marcha introdutória é significativo: o coro entra em cena se anunciando como designados pelo próprio Xerxes, que foi para a guerra contra os helenos, para cuidar do palácio e suas riquezas. O grupo é constituído de pessoas de idade. A idade lhes outorga diversos atributos: agilidade menor, dignidade, memória, confiança. Eles ficaram para guardar o palácio pois não podem mais participar do front de uma guerra. Ésquilo enfatiza muito bem isso: se os homens foram lutar, ficaram os que não podem lutar: mulheres, crianças e idosos.  
Continuando o texto, vemos que precisamos pensar duas ou mais vezes para construir um período simples ou uma ordem direta: os versos se sucedem por inclusões e expansões de informações.   O coro poderia dizer: “Somos os guardiões desse palácio cheio de riquezas e ouro. Fomos nomeados pelo próprio Xerxes, filho de Dário, nosso rei e senhor.  O povo nos chama de Os Fiéis.  Estamos aqui enquanto os homens desse reino marcham contra a Grécia” Seria mais inteligível, mais discursivo, mas não é o que temos aqui: o coro não está falando, e sim recitando suas palavras enquanto se movimenta. A ritmização dos pés direciona a ritmização das palavras. A marcha anapéstica determina uma articulação vocal que fica entre o canto e a fala. Disso a ênfase não está em cumprir todas as funções sintáticas em sum completude e sim apontar as referências que são mais relavantes para a performance do coro. O coro canta por que se mostra em cena sua performance. Ele não está lá para discorrer verbalmente sobre algo. A ênfase não é no conteúdo das palavras e sim no movimento. Daí há restrições no uso da língua, pois o que importa aqui não é a comunicação verbal e sim diversos canais de percepção: som, visualidade, movimento. O que é ativado aquilo da língua é só que é usado neste campo multissenorial: o impacto da presença audiovisual do coro.


Junto com a música do aulos e da fala entoada dos anapestos, o público também observa o figurino do coro:


Depois desse lento desfile dos velhos membros do conselho persa, eles dançam e cantam se valendo de ritmos com uma definição étnica: trata-se dos ‘jônios a minore’, que, mais sincopados

O coro entra e estende sua presença por toda a peça. Como não sabe o que aconteceu, a entrada das novas personagens vai trazer tanto novas informações quanto aprofundar os presságios que já vão se transformando em fatos.
Daí se instaura o incrível jogo do espetáculo: a assimetria, a diferença entre os agentes em cena sabem do que aconteceu e o que o público sabe. Quando mais o agentes sabem, mais sofrem. Do lado da audiência, os acontecimentos revelados em cena confirmam o já sabido, ratificam a vitória ateniense.
Essa assimetria atualiza o embate dos combatentes, a experiência mesma da guerra, no confronto face a face de soldados inimigos. Não apenas estão em luta: a guerra opõe, mas aproxima. O sangue é derramado entre vencedores e vencidos.  No Teatro de Dioniso, Ésquilo se vale da desgraça alheia tanto para rememorar os triunfos atenienses quanto para mostrar as consequências da guerra para todos.
O orgulhoso coro entra no teatro cantando e dançando um catálogo de comandantes e povos alinhados com as forças persas, que se arremetem contra a Grécia quase que esvaziando a Ásia. Junto com esse catálogo, o coro enuncia versos de dúvidas, presságios de uma humilhante expedição fracassada.
Deve-se entender que havia antecedentes. Como sabemos, o pai de Xerxes, Dario I, na primeira invasão persa, havia sido derrotado pelos hoplitas atenienses, entre os quais estava Ésquilo, em 490 a. C, cerca de vinte anos antes da apresentação de Os Persas. Xerxes viera para a Grécia para completar o trabalho de seu pai. Pesava sobre esta segunda invasão persa a sobre da batalha de Maratona.
Este coro dividido entre orgulho e a incerteza projeta as ambivalências que organização o espetáculo. A confirmação da derrota é adiada até o fim da peça quando o próprio Xerxes entra em cena, apenas no êxodo.
O adiamento da entrada de Xerxes retoma  a assimetria entre público e cena. A expectativa do retorno do Xerxes desloca as atenções do espetáculo para o drama da casa real, da sobrevivência de um império. Isso é reforçado pela entrada das  personagens  Atossa, a rainha-mãe e depois do mensageiro, que conta os resultados da batalha fora de cena. O longo bloco de acontecimentos  do primeiro episódio responde a algumas das angústias do coro e concentra na figura do ausente Xerxes o foco de atenção.  O catálogos de comandantes e povos apresentados pelo coro durante o párado é reunido na emblemática figura de seu soberano.

Nesse momento, a conclusão da peça se junta ao seu começo, uma seção respondendo a outra: Xerxes entra e não fala, não tem direito a voz de uma personagem. Ele partilha com o coro um lamento, um catálogo ao inverso, ao recontar os comandantes e exércitos que perdeu na guerra. Perdeu tudo, até suas roupas. O rei em farrapos, o reino destruído. Uma impulso sendo respondido por um contra-movimento.  As diversas informações lançadas pelo coro correspondem ao modo heterogêneo como a performance do coro se efetiva diante da audiência. Assim, sabemos que o coro está em um palácio, que o soberano foi com seus homens para uma guerra, e que o reino é rico. Tais  referências serão retomadas durante a peça, não necessitam de ser neste momento destrinchadas.
Assim, em uma dramaturgia musical a linguagem verbal é reprocessada: os materiais verbais são escolhidos e dispostos em função dos parâmetros da cena. É a atividade do coro que vai explicitar essa complexa relação com a língua.
No caso de Os Persas vemos que se trata de um grupo étnico não grego. Vai ser um desafio para Ésquilo. Mesmo se dirigindo a uma audiência helênica, seria fundamental de alguma maneira marcar este ‘Outro’que são os persas, ou bárbaros.
Uma das estratégias é a de desvirtuar alguns elementos da língua. É o que Ésquilo faz ainda no párodo, em seguida a esta apresentação (1-6), ao enumerar os guerreiros que partiram para a Hélade. Esta lista ou catálogo é composto por nomes de lugares e capitães (16-64). Aqui estão enumerado os que partiram da pérsia vivos para combater contra os gregos.  O resultado inicial desse magnífico esforço de guerra é a impressão que toda a Ásia enviou tanta gente, mas tanta gente que se esvaziou. A flor ou a nata dos guerreiros, os melhores homens se foram. E ambivalentemente o verbo partir é usado: ir e não voltar, partir e morrer.
As funções desse catálogo são diversas:
1- inicialmente temos um jorro de palavras de base não grega projetadas contra o auditório:  Amistres, Artafrenes, Megagates, Astapes, Artembares, Masistres, Imaio, Farandaces, Sostenes, Suciscanes, Pegastágon, Arsames, Ariomardo, Metrógates, etc.  Ésquilo e muitos dos estavam ali no teatro estariam familizados com esses sons que se marcavam como de povos de outras culturas. O exotismo linguístico providenciaria uma correlação entre a identidade do coro e universo representado. Assim, algumas condições mínimas de identificação ou caracterização seriam cumpridas. Mas não é apenas isso.
2- a lista de lugares e pessoas traria para a cena uma amplitude representacional, funcionando como um cenário em movimento. Assim, o coro e a audiência se seriam projetados para lugares outros que Atenas, para um mundo dividido em suas complexa geografia humana e política.
3- o procedimentos paratático do catálogo faria uma relação entre Homero e Ésquilo[2]. O segundo canto da Ilíada abre com a enumeração das tropas argivas que foram até Tróia. Nesse sentido, haveria uma correlação entre a guerra mais famosa de todas com esta que acabara de acontecer. Logo, fundir a Segunda Guerra Médica com os acontecimentos narrados por Homero é transferir para agora o heroísmo, exemplaridade e singularidade do passado.  Os Persas podem assim se apresentar como uma dramaturgia que explora o tratamento épico de seu material.  Nunca esquecer que o coro como um grupo de homens recitando este texto a si próprio se evidencia como “uma poderoso exército marchando orgulhoso para a guerra[3]
4- O isolamento sintático do catálogo, com sua sintaxe específica de objetos autônomos, oferece para a audiência algo que pode ser comparado com outros conjuntos igualmente assim construído. Ao fim da peça, com a volta de Xerxes e seu lamento pela derrocada do império, ele e o coro performam um segundo catálogo, que lista os guerreiros mortos. Assim, o párodo, o começo da peça, é respondido pelo êxodo, o fim da peça, contribuindo para a ratificação da estrutura em anel do espetáculo[4].


E tudo pelo som. O catálogo possui sua sintaxe própria, na qual vocábulos-chave se apresentam mais independentes. Essa fluidez nas conexões ou no vínculo entre as palavras porém aponta para outros efeitos. Aquilo se se isola e é repetidamente marcado como separado, acaba por constituir uma cadeia de associação por semelhança estrutural, reforçando um padrão que se aproxima do fenômeno acústico da reverberação. Por esse fenômeno, o som parecer se prolongar para além do tempo de sua ocorrência. Esse persistência para além de sua emissão e de sua fonte sonora possui diversos efeitos psicoacústicos e utilidades.  Para uma dramaturgia elaborada com olhos e ouvidos em um teatro com qualidades acústicas já apresentadas, esse efeito de persistência e suas aplicações são mais que ocasionais.  Do catálogo dos vivos para o catálogo dos mortos: o que Ésquilo quis colocar em cena com Os Persas?


Após os anapestos, o coro se apresenta em um conjunto de pares estróficos (65-139). Ou seja, o coro toma o centro de orientação da cena e canta e dança, amplia as marcas performativas de sua entrada. As entradas corais em Ésquilo são bem distinguíveis em sua dupla natureza: uma seção em marcha para o coro ser visível e audível pela primeira vez pela audiência; e outra que amplia imaginativamente aspectos da situação inicial. Nas performances corais com organização estrófica, há uma maior exploração de possibilidades coreográficas, melódicas, sonoroas e narrativas. Estando sozinho em cena, o coro pode gerar as mais diversas combinações sensoriais.
No caso de Os persas, temos um explosão de sentimentos constrastantes a respeito da partida dos guerreiros liderados por Xerxes: se o catálogo apresenta uma confiança na força e poder desse gigantesco fluxo de homens, por outro lado as incertezas do destino e da guerra trazem apreensão e dor antecipada. A performance do coro assim se organiza:
 1- A (5) / A’ (5)[5]
Estrofe A
65 Por agora já deve ter atravessado, saquador de cidades,
o exercíto do rei, para a costa fronteira da região vizinha
passando pelo estreito de Hele, filha de Atamas,
por meio de barcos amarrados com corda de linho,
caminho super atarrachado como um jugo no pescoço do mar.

Antístrofe A
70 O impetuoso governante da Ásia cheia de homens
guia seu divino rebanho pelo mundo inteiro
pelas duas vias, a pé e por mar,
confiando nos seus firmes comandantes severos -
80 ele, homem igual aos deuses, da raça gerada do ouro.


2-  B(6)/B’(6)
Estrofe B
Nos olhos o brilho escuro
de uma serpente mortal,
com muitas mãos e muitos barcos
guiando o carro sírio
85 ele conduz Ares arqueiro
contra homens famosos por suas lanças.

Antístrofe B
Ninguém será capaz de  suportar
este enorme fluxo de homens
afastando com defesas vigorosas
90 a invencível onda do mar.
Não se pode resistir ao exército persa
e sua tropa de coração guerreiro.

3- C (5)/ C’(5)
Estrofe C
102 Pois o Destino, decreto enviado pelos deuses,
tempo atrás impôs aos Persas
105 se engajar apenas em guerras que derrubam fortalezas,
nos tumultos de combates a cavalo
e em destruição de cidades.

Antístrofe C
110 Mas eles aprenderam frente ao imenso mar
de ondas embraquecidas pelo vento violento,
a considerar o espaço sagrado dessas águas,
confiantes que estavam nas frágeis amarras
e engenhos para transporte das tropas.




Épodo
93 Mas dos enganos concebidos por um deus
que homem mortal poderá escapar?
Quem com pés ágeis
tem poder para fugir fácil disso?
Pois primeiro a deusa da Ruína amigavelmente adula um
homem e depois o conduz para suas redes.
100 Não é possível para um mortal escapar e fugir.

4- D (5) / D’(5)
Estrofe D
114 Por causa disso é que de negras vestes
115 está meu coração, e rasgadas de pavor.
armada Persa !  
Que a grande cidade de Susa,
esvaziada de homens, não venha a ouvir esse grito de lamento!

Antístrofe D
121 E que a cidade dos Císsios
 não cante em resposta:
AÔ -  pois é o que a massiva horda
de mulheres vai gritar
125 enquanto fazem em remendos seus vestidos de linho.

5-  E( 5) / E’ (5)
Estrofe E 
Pois toda a cavalaria
e todo o contingente de homens a pé
como um enxame de abelhas, partitiu seguindo seu chefe,
130 atravessando pelo cabo que une os dois continente
o mar comum que os atrela.

Antístrofe E
Os leitos de amor estão cobertos
com as lágrimas de desejo pelos homens.
135 As mulheres persas, lamentando com malemolência cada um,
amor e desejo por seu homem do qual se despediu,
impetuso guerreiro companheiro de cama, agora estão sós.

Esta segunda parte da entrada coro se distribuí em três seções[6]. Do par estrófico 1 ao 3, temos uma sequência que se vale do ritmo jônio. Este ritmo apresenta uma coloração ética, associada a colônias gregas situadas na Ásia Menor. Seu padrão se assemelha ao anapesto de marcha (UU-  UU-), também duplas breves (UU) mas agora não entre uma longa (-), mas entre duas longas, favorecendo um movimento ascendente, reiterado, repetitivo.  Assim, a regularidade dos jônios colocam em cena o movimento imparável do inimigo[7]
Assim, o dramaturgo nos vez e ouvir um coro de senhores conselheiros de Estado entrando em cena em uma marcha mais lenta no párodo, para depois modular este ritmo para uma movimentação mais dinâmica, que atualiza o deslocamento mesmo das tropas para invandir a terra da Hélade. Nesse caso, a passagem de um ritmo para o outro acarretou a ampliação da imaginação da audiência que agora conecta a performance organizada do coro com a triunfante expedição de Xerxes e seus exercítos. É como se no momento atual da performance do coro, a invasão persa estivesse acontecendo.
No detalhe métrico, temos o seguinte correspondência entre textos, métrica e notação musical:
1- TEXTO GREGO, TRANSCRIÇÃO MÉTRICA, TRADUÇÃO[8]
πε-πέ- ρα - κεν μὲ-ν’ὁ περ-σέπ- το-λι-ς’ἤ- δη  
U   U   -    -       U   U    -     -     U  U    -    -
(Por agora já deve ter atravessado, saquador de cidades
βα-σί-λει- ος στρα-τὸ-ς’εἰ-ς’ἀν-τί-πο-ρον γεί-το-να χώ-ραν,
U  U   -     -    U    U     -     -     U  U   -     -     U  U   -    -

o exercíto do rei, para a costa fronteira da região vizinha
λι-νο- δέσ- μῳ σχε-δί-ᾳ πορ-θμὸ-ν’ἀ-μεί-ψας 
U  U    -       -     U   U  -  -      U    U    -     -
por meio de barcos amarrados com corda de linho,

 Ἀ-θα-μαν-τί-δο-ς’Ἕλ-λας,
  U  U    -   U  U     -      -
 passando pelo estreito de Hele, filha de Atamas,

πο-λύ-γομ-φο- ν‘ὅ-δισ-μα ζυ-γὸ-ν’ἀμ-φι-βα- λὼ -ν’αὐ-χέ-νι πόν-του.
 U U    -      U   U   -    -     U  U    -     U  U   -     -      U U      -     -
caminho super atarrachado como um jugo no pescoço do mar.

2- NOTAÇÃO MUSICAL







Ora, explorando as semelhanças entre a marcha dos anapestos (2/4 ♪♪) e o ritmo dos jônios(3/4 ♪♪♩♩) , Ésquilo torna perceptível na dança e no canto aquilo que se enuncia no texto: o exército persa uniu a Ásia (jônios) aos gregos (anapestos). O coro dança essa união em seus passos, fazendo modulações entre os metros, como se observa na notação musical.
Ao mesmo tempo, temos que tudo se dá em um teatro para os gregos, com gregos dançando o desastre persa. Assim, essa aproximação revela entre Ásia e Europa, entre Oriente e Ocidente se dá a partir de uma perspectiva grega: tudo que se refere aos persas se faz a partir da Hélade. Ninguém se transporta totalmente ao Outro: gregos com máscaras, sons, palavras e vestimentas parcialmente persas continuam a ser gregos. Não há perigo: a caracterização não é absoluta.
É o que começamos a ver e ouvir no seguir da atividade coral. A uniformidade do metro que se associa aos invasores bárbaros começa a ruir com sua constantes modulações anapésticas, como se vê notados nos compassos 11,13, 15. Ao mesmo tempo, ao fim do par estrófico três não temos uma estrutura paralela: temos uma estrofe órfã, sem responsividade, o épodo (93-100), que sinaliza uma intervenção divina nos estratagemas de Xerxes ou limitação dos propósitos humanos frente a amplitude dos acontecimentos. Os invencíveis persas, que superam até limites naturais ao reunir continentes separados pelo mar, defrontam-se com as lições da sabedoria tradicional helênica, como moderação e aceitação da superioridade dos deuses. Daí o épodo: um módulo em isolamento, sem complementariedade e eco, indicando a finitude e limitação humanas.
Nesse ponto, nessa fratura na forma, fica clara a interferência de uma outra voz que a voz dos anciãos bárbaros. O coro como um conjunto de vozes performa diversas outras perspectivas em relação aos acontecimentos dramatizados em cena. Essa interferência aqui é a perspectiva grega inserida na avaliação do projeto imperial de Xerxes, já antecipando não apenas os efeitos do desastre que virá, como também uma interrogação sobre as causas do fracasso desse projeto.
Essa mudança de foco que a interferência coral traz é marcada tanto pelo colapso pontual da forma estrófica quando da mudança de metro que se segue[9]. Novamente organizados em canto responsivo, paralelo, o coro agora, nos dois últimos pares estróficos  (4 e 5), deixa de celebrar o poder irrestível de Xerxes e seus homens para performar um antecipado lamento pelos homens que partiram, por meio de lecítios ( 6/8  ♪/ ), que são uma forma de ritmos trocaicos (6/8  ♪)[10]. Os trocaicos relacionam com movimentos ágeis, rápidos, dançantes[11].
Então, após marchar quase como um persa sobre a Grécia na primeira parte da atividade coral, o coro agora dança agitado como uma mulher os presságios e angústia da volta ou não de seus homens para a intimidade da casa.  Os membros do coro focam na perspectiva das esposas em uma terra vazia de homens e produzem um lamento que mistura erotismo e sofrimento. À guerra dos homens contrapõe-se a das mulheres. Ésquilo feminiliza o coro, produzindo uma nova interferência: os maduros e guardiões do palácio real fundem-se com as futuras viúvas.
Assim, o coro na sucessão de sua performance adquire diversas identidades, ratificando sua plasticidade. Mas toda essa mascarada se contrói sob a base de uma relação: é um espetáculo que traz para o seu público as imagens e sons de um inimigo já derrotado. Daí o coro nunca adotar uma caracterização completa daquilo que performa. Habilmente Ésquilo projeta para o ouvinte e espectador diversas níveis de referência, que podem entrar em colisão. Aqui isso é bem claro.  O coro dança assim:
1- TEXTO GREGRO, TRANSCRIÇÃO MÉTRICA, TRADUÇÃO[12]


ταῦ-τά μοι με-λαγ-χί-των
    -   U  -     U   -     U     -


Por causa disso é que de negras vestes

φρὴ-ν’ἀ-μύσ-σε-ται φό-βῳ— 
    -      U    -        U    -     U    -
está meu coração, e rasgadas de pavor.

ὀᾶ Περ-σι-κοῦ στρα-τεύ-μα-τος— 
        -      U   -       U       -    U    -
armada Persa ! 

τοῦ-δε μὴ πό-λις πύ-θη- 
 -      U   -   U   -     U   -
Que a grande cidade de Susa,


ται,κέ-ν’αν-δρον μέ-γ’ἄσ-τυ Σου-σί-δος·
 -     U     -      -      U           U   -     U   -  

esvaziada de homens, não venha a ouvir esse grito de lamento!

2- Notação musical


Reforçando essa completa e ambivalente mudança nas emoções do coro, no compasso 09 temos um pé crético adicionado ao lecítios. Essa pequena inserção ratifica o contexto ritmado da cena, que se articula verbalmente como lamento mas se vale de passos de dança efusiva.
Os gritos do coro se fazer ouvir no teatro: os idosos homens choram e berram como mulheres no cio. A acumulação de referências é imensa: homens gregos fazendo o papel de anciãos persas que se lamentam como mulheres lamentam por seus homens ausentes.  O ritmo e especialmente o conteúdo das falas da antístrofe 5 produzem um  estranhamento advindo da colisão de percepções: vemos e ouvimos muitas coisas, múltiplas identidades, mas ao fim, fechando o párodo, temos em cena homens desvirilizados, entregues ao torpor de uma luxúria que chegou ao fim.
Aqui a combinação de lecítios e créticos continua, mas há a inserção nos versos finais de cada estrofe, de troqueus associados a rituais fálicos, os chamados itifálicos: - U - U- - ( 6/8 ♪/♩♩), o que cadencia um pouco o movimento e intensifica as referências ao desejo sexual.

Com isso, a seção anapéstica, a entrada do coro, e a atividade coral subsequente se completam, apresentando, como em um trailler os temas e imagens fundamentais da peça:  há um arco que se ergue e se distende entre a possibilidade da vitória da expedição liderada por Xerxes e o já conhecido desastre persa.  Tudo que agora foi disposto perante ao público será redimensionado, ampliado, particularizado: os catálogos serão retomados, dilatados, como forma de se expandir não o império persa, mas sua destruição. A figura de Xerxes, tomada como centro dessa pretendida conquista, será catapultada como o catalisador de todas as má decisões tomadas. E as incertezas e apreensões expressas pelo coro serão ultrapassadas pelas notícias cada vez piores da derrota no campo de batalha.
Será que Ésquilo estaria desenvolvido uma consciência da amplitude da arte performativa, algo como o teatro do mundo, em que as referências colocadas em cena não se reduzem ao seu contexto imediato?





[1] Tradicionalmente aplica-se o símbolo (U), sílaba curta,  para durações que são a metade do símbolo (-), sílabas longas. É preciso ter em mente que, na ausência de uma medição absoluta de tempo (metrônomo), este valores são convencionais. Uma discussão da questão pode ser vista em
[2] Para o modelo homérico, v. PERCEAU 2002.
[3] GARVIE 2009:45.
[4] IRIGOIN 2004, MUÑOZ 2013.
[5] Na distribuição e numeração de versos,sigo SOMMERSTEIN 2008.
[6] V. IRIGOIN 2009, GARCÍA NOVO 2000.
[7] GARCÍA NOVO 200O:139.
[8] Foco-me apenas os cinco primeiros versos da seção estrófica do párodo.
[9] CENTANNI 2012, PACE 2010.
[10] Na Orestéia, Ésquilo se vale dos lecítios para ações de justiça e punição da parte de Zeus. V. SCOTT 1984,CHIASSON 1988.
[11] GENTILLI & LOMIENTO 2003:120. WEST 1994: 158 acrescesta: “Iambos e troqueus eram mais dinâmicos (mobile); dos dois, iambo se aproximava do ritmo da fala cotidiana, das transações interpessoais, com certa dignidade; por sua vez, troqueus era tinha menos dignidade, eram mais agitados (tripping), mais dançantes mais relacionados com o kordax, dança com seu caráter animado (lively) e vulgar”.
[12] As interjeições, gritos, tradicionalmente são analisadas como elementos extramétricos: não são levados em consideração no cômputo do ritmo, embora esteja ali presentes responsivamente. O coro grita na estrofe e é respondido na antístrofe nos pares métricos 4 e 5.

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