4.48
PSICOSE
de
Sarah Kane
Tradução
de Laerte Mello
(Um silêncio
muito longo.)
- Mas você tem amigos.
(Um longo
silêncio.)
Você tem
muitos amigos.
O que é que
você dá aos seus amigos que faz com que eles te apóiem tanto?
(Um longo
silêncio.)
O que é que
você dá aos seus amigos que faz com que eles te apóiem tanto?
(Um longo
silêncio.)
O que é que
você dá?
(Silêncio.)
- - - - -
uma consciência consolidada reside num salão de
banquete escurecido perto do teto de uma mente cujo chão se move como dez mil
baratas quando um feixe de luz penetra como todos os pensamentos se unem num
instante de harmonia corpo não mais repelente como as baratas contém uma
verdade que ninguém nunca fala
Tive uma
noite em que tudo me foi revelado.
Como eu
posso falar de novo?
hermafrodita em pedaços que só confiou nelenela
encontra a sala fervendo em realidade e implora nunca acordar do pesadelo
e estavam
todos lá
cada um
deles
e eles
sabiam meu nome
enquanto eu
escapava feito um besouro ao longo das costas de suas cadeiras
Lembre-se da luz e acredite na luz
Um instante de claridade antes da noite eterna
não me deixe esquecer
- - - - -
Eu estou triste
Eu sinto que o futuro é sem esperança e que as coisas
não podem melhorar
Eu estou cheia e insatisfeita com tudo
Eu sou um completo fracasso como pessoa
Eu sou culpada, estou sendo punida
Eu gostaria de me matar
Eu costumo conseguir chorar mas agora estou além das
lágrimas
Eu perdi o interesse em outras pessoas
Eu não consigo tomar decisões
Eu não consigo comer
Eu não consigo dormir
Eu não consigo
pensar
Eu não consigo ir além da minha solidão, do meu medo,
do meu desgosto
Eu estou gorda
Eu não consigo escrever
Eu não consigo amar
Meu irmão está morrendo, meu amor está morrendo, estou
matando os dois
Eu avanço em direção à minha morte
Eu estou aterrorizada com a medicação
Eu não consigo fazer amor
Eu não consigo foder
Eu não consigo ficar sozinha
Eu não consigo ficar com outras pessoas
Meus quadris estão muito grandes
Eu não gosto da minha genitália
Às 4.48
quando o desespero visita
eu deverei me enforcar
ao som da respiração de meu amante
Eu não quero morrer
Eu me tornei tão deprimida pelo fato da minha
mortalidade que eu decidi cometer suicídio
Eu não quero viver
Eu tenho ciúmes de meu amor adormecido e cobiço sua
inconsciência induzida
Quando ele acordar vai ter inveja da minha noite sem
dormir de pensamentos e discursos sem atrativos por causa dos medicamentos
Resignei-me a morrer este ano
Alguns vão chamar isso de auto-compaixão
(eles têm sorte de não saber a verdade)
Alguns vão saber o simples fato da dor
Isso está se tornando minha normalidade
- - - - -
100
91
84
81
72
69
58
44
37 38
42
21 28
12
7
- - - - -
Não foi por muito tempo, eu não estive lá muito tempo.
Mas bebendo café amargo eu sinto aquele cheiro medicinal numa nuvem antiga de
tabaco e algo me toca naquele lugar ainda soluçante e uma ferida de dois anos
atrás se abre como um cadáver e uma vergonha há muito enterrada brande sua
fétida e decadente mágoa.
Um quarto de faces sem
expressão que encaram com indiferença a minha dor, tão desprovidas de
significado que deve haver uma intenção diabólica.
Dr. Isso e Dr. Aquilo e Dr
Oqueéisso que estava apenas de passagem e achou que poderia entrar para tirar
um sarro também. Queimando num túnel quente de desalento, minha humilhação
completa por eu tremer sem razão e por tropeçar nas palavras e por não ter nada
a dizer sobre minha "doença" que de qualquer maneira é apenas saber
que não há significado em coisa nenhuma porque eu vou morrer. E estou num beco
sem saída levada por aquela voz suave e psiquiátrica da razão que me diz que há
uma realidade objetiva na qual meu corpo e mente são uma coisa só. Mas não
estou aqui nem nunca estive. Dr. Isso escreve e Dr. Aquilo tenta um murmúrio
simpático. Me assistindo, me julgando, cheirando o fracasso paralisante que
escorre da minha pele, meu desespero me rasgando e o pânico me consumindo me
encharcando enquanto eu abro a boca de horror para o mundo e penso por que
todos estão sorrindo e me olhando com um conhecimento secreto da minha dolorosa
vergonha.
Vergonha vergonha vergonha.
Afogada na sua vergonha de
merda.
Médicos misteriosos, médicos
sensatos, médicos excêntricos, médicos que você pensaria que são uns porras de
uns pacientes se não lhe mostrassem provas do contrário, fazem as mesmas
perguntas, colocam palavras na minha boca, oferecem curas químicas para
angústias congênitas e cobrem os rabos uns dos outros até eu querer gritar por
você, a única médica que me tocou voluntariamente, que olhou nos meus olhos,
que riu do meu humor mórbido falado numa voz vinda de dentro do meu túmulo
recém-cavado, que tirou um sarro quando eu raspei minha cabeça, que mentiu e
disse que era legal me ver. Que mentiu. E disse que era legal me ver. Eu
confiei em você, eu amei você, e não é perder você que me machuca, mas sim sua
falsidade fodida e descarada que se mascara em notas médicas.
Sua verdade, suas mentiras,
não minhas.
E enquanto eu acreditava que
você era diferente e que você talvez até sentisse a aflição que às vezes
oscilava pela sua face e ameaçava irromper, você estava cobrindo seu rabo
também. Como qualquer outra boceta mortal estúpida.
Na minha cabeça isso é
traição. E minha cabeça é o tema desses fragmentos desorientados.
Nada pode extinguir meu
ódio.
E nada pode restaurar minha
fé.
Este não é um mundo em que
eu deseje viver.
- - - - -
- Você fez algum plano?
- Tomar uma overdose, cortar meus pulsos depois me
enforcar.
- Tudo isso de uma vez?
- Isso não poderia de jeito nenhum ser interpretado
como um grito de socorro.
(Silêncio.)
- Não daria certo.
- Claro que daria.
- Não daria. Você se sentiria sonolenta por causa da
overdose e não teria forças para cortar os pulsos.
(Silêncio.)
- Eu estaria em pé numa cadeira com uma corda enrolada
no pescoço.
(Silêncio.)
- Se você estivesse sozinha você acha que você faria
mal a você mesma?
- Eu tenho medo que eu possa.
- Isso não seria uma defesa?
- Sim. É o medo que me mantém longe dos trilhos do
trem. Só espero de Deus que a morte seja mesmo a porra do fim. Me sinto como se
tivesse oitenta anos de idade. Estou cansada da vida e minha mente quer morrer.
- Isso é uma metáfora, não realidade.
- É um símile.
- Isso não é realidade.
- Não é uma metáfora, é um símile, mas ainda que
fosse, a característica que define uma metáfora é que ela é real.
(Um longo
silêncio.)
- Você não tem oitenta anos de idade.
(Silêncio.)
Você tem?
(Silêncio.)
Você tem?
(Silêncio.)
Ou você tem?
(Um longo
silêncio.)
- Você despreza todas as pessoas infelizes ou só
especificamente a mim?
- Eu não desprezo você. Você não tem culpa. Você está
doente.
- Eu não acho.
- Não?
- Não. Estou deprimida. Depressão é ódio. É o que você
fez, você que estava lá e que está se culpando.
- E quem você está culpando?
- A mim mesma.
-
- - - -
Corpo e alma nunca podem se casar
Preciso me tornar quem já sou e bradarei contra esta
incongruência que me destinou ao inferno
A esperança insolúvel não me mantém de pé
Eu me afogarei na disforia
na
lagoa negra e fria de mim mesma
o
fosso da minha mente imaterial
Como eu posso voltar à forma
agora que meu pensamento formal se foi?
Não é uma vida que eu possa aceitar.
Eles vão me amar por aquilo que me destrói
a
espada nos meus sonhos
o pó
dos meus pensamentos
a
doença que se reproduz nos cantos da minha mente
Todo elogio tira um pedaço da minha alma
Uma crítica expressionista
Nas cadeiras centrais entre dois bobos
Eles não sabem nada –
Eu
sempre saí livre
Última numa longa linha de cleptomaníacos literários
(uma tradição honrada pelo tempo)
Roubo é o ato sagrado
No caminho distorcido para a expressão
Um excesso de pontos de exclamação escreve um iminente
colapso nervoso
Uma única palavra numa página e lá está o teatro
Eu escrevo pelos mortos
os
não-nascidos
Depois das 4.48 eu não devo falar mais
Eu alcancei o fim desse conto sombrio e repugnante
de um sentimento internado numa carcaça alienígena e
inchado pelo espírito maligno da maioria moral
Eu estou morta há muito tempo
De volta às minhas raízes
Eu canto sem esperança na fronteira
- - - - -
RSVP ASAP
- - - - -
Às vezes eu me viro e sinto o cheiro de você e eu não
posso seguir eu não posso seguir foda-se sem expressar essa terrível tão
fodidamente horrorosa física dolorosa fodida saudade que eu tenho de você. E eu
não posso acreditar que posso sentir isso por você e você não sente nada. Você
não sente nada?
(Silêncio.)
Você não sente nada?
(Silêncio.)
E eu saio às seis da manhã e começo minha procura por
você. Se sonhei a mensagem de uma rua ou um bar ou uma estação eu vou lá. E
espero por você.
(Silêncio.)
Você sabe, eu me sinto como se estivesse sendo
manipulada mesmo.
(Silêncio.)
Eu nunca na minha vida tive problema em dar a outras
pessoas o que elas querem. Mas ninguém jamais foi capaz de fazer isso por mim.
Ninguém me toca, ninguém se aproxima de mim. Mas agora você me tocou em algum
lugar tão fodidamente profundo que eu não consigo acreditar e eu não consigo
ser assim para você. Porque eu não consigo te achar.
(Silêncio.)
Como ela é?
E como eu vou saber que é ela quando a vir?
Ela vai morrer, ela vai morrer, foda-se ela só vai
morrer.
(Silêncio.)
Você acha que é possível uma pessoa nascer no corpo
errado?
(Silêncio.)
Você acha que é possível uma pessoa nascer na época
errada?
(Silêncio.)
Vai se foder. Vai se foder. Vai se foder por me
rejeitar nunca estando lá, vai se foder por me fazer sentir uma merda, vai se
foder por me fazer sangrar amor e vida, que se foda meu pai por ter fodido
minha vida para sempre e que se foda minha mãe por não tê-lo abandonado, mas
acima de tudo, vai se foder Deus por ter me feito amar alguém que não existe,
VAI SE FODER VAI SE FODER VAI SE FODER.
-
- - - -
- Ah querida, o que aconteceu com seu braço?
- Eu me cortei.
- Isso foi muito imaturo, procurar chamar a atenção
desse jeito.
Te aliviou de
alguma forma?
- Não.
- Aliviou sua tensão?
- Não.
- Te aliviou de alguma forma?
(Silêncio.)
Te aliviou de
alguma forma?
- Não.
- Não entendo por que você fez isso.
- Então pergunte.
- Aliviou sua tensão?
(Um longo
silêncio.)
Posso olhar?
- Não.
- Queria olhar, para ver se infeccionou.
- Não.
(Silêncio.)
- Eu achei que você poderia fazer isso. Muita gente
faz. Alivia a tensão.
- Você já fez?
- ...
- Não. São e sensato demais porra. Não sei onde você
leu isso, mas não alivia a tensão.
(Silêncio.)
Por que você
não me pergunta por quê?
Por que eu cortei meu braço?
- Você quer me falar?
- Sim.
- Então fale.
- ME.
PERGUNTE.
POR QUÊ.
(Um longo
silêncio.)
- Por que você cortou seu braço?
- Porque me faz sentir bem pra caralho. Porque é bom
pra caralho.
- Posso olhar?
- Você pode olhar. Mas não toque.
- (Olha) E você acha que não está doente?
- Não.
- Eu acho. A culpa não é sua. Mas você tem que assumir
a responsabilidade pelos seus atos. Por favor não faça isso de novo.
- - - - -
Eu temo perder aquela que eu nunca toquei
o amor me mantém escrava numa jaula de lágrimas
Eu rôo minha língua com a qual nunca posso falar com
ela
Eu sinto falta de uma mulher que nunca nasceu
Eu beijo uma mulher através dos anos que dizem que
nunca devemos nos encontrar
Tudo
passa
Tudo
perece
Tudo
empalidece
meu
pensamento se vai com um sorriso assassino
deixando uma ansiedade discordante
que
ruge na minha alma
Sem esperança Sem esperança Sem esperança Sem
esperança Sem esperança Sem esperança Sem esperança
Uma canção para minha amada, tocando sua ausência
o
fluxo do coração dela, o respingar do seu sorriso
Em dez anos ela ainda estará morta. Quando eu estiver
vivendo com isso, lidando com isso,
quando alguns dias se passarem quando eu nem sequer
pensar mais nisso, ela ainda estará morta.
Quando eu for uma velha senhora vivendo na rua
esquecendo meu nome ela ainda estará morta, ela ainda estará morta, esta
porra
está
acabada
e eu tenho que ficar sozinha
Meu amor, meu amor, por que me abandonaste?
Ela é o lugar de repouso onde nunca deitarei
e a vida não tem sentido na luz da minha perda
Feita
para ser sozinha
para
amar a ausência
Me
encontre
me
liberte
desta
dúvida corrosiva
desespero fútil
horror em repouso
Eu
posso ocupar meu espaço
ocupar
meu tempo
mas
nada pode ocupar o vazio de meu coração
A
necessidade vital pela qual eu morreria
Esgotamento
- - - - -
- Nada de ses ou mases.
- Eu não disse se ou mas, eu disse não.
- Não-posso
devo nunca tenho-que
sempre não-vou devia
não-deverá.
Os
inegociáveis.
Hoje não.
(Silêncio.)
- Por favor. Não desligue minha mente na tentativa de
me curar. Ouça e entenda, e quando sentir desprezo não o expresse, pelo menos
não verbalmente, pelo menos não para mim.
(Silêncio.)
- Eu não sinto desprezo.
- Não?
- Não. A culpa não é sua.
- A culpa não é sua, isso é tudo que eu sempre ouço, a
culpa não é sua, é uma doença, a culpa não é sua, eu sei que a culpa não é
minha. Você me disse isso com tanta freqüência que eu estou começando a pensar
que a culpa é minha.
- A
culpa não é sua.
- EU SEI.
- Mas você permite.
(Silêncio.)
Permite?
- Não há uma droga sobre a terra que possa fazer a
vida significar algo.
- Você permite esse estado de desesperado absurdo.
(Silêncio.)
Você permite.
(Silêncio.)
- Eu não serei capaz de pensar. Eu não serei capaz de
trabalhar.
- Nada vai interferir mais em seu trabalho do que o
suicídio.
(Silêncio.)
- Eu sonhei que tinha ido à médica e ela me deu oito
minutos para viver. E eu tinha ficado sentada na porra da sala de espera por
meia hora.
(Um longo
silêncio.)
Tudo bem, vamos lá, vamos às drogas, vamos para a
lobotomia química, vamos desligar as funções mais altas do meu cérebro e talvez
eu me torne um pouco mais fodidamente capaz de viver.
Vamos lá.
- - - - -
abstração até o limite de
desagradável
inaceitável
desinspirador
impenetrável
irrelevante
irreverente
irreligioso
impenitente
desagradar
deslocar
desencarnar
desconstruir
Eu não imagino
(claramente)
que uma única alma
podia
poderia
deveria
ou deverá
e se eles fizessem
não acho
(claramente)
que outra alma
uma alma como a minha
podia
poderia
deveria
ou deverá
sem levar em conta
Eu sei o que eu estou fazendo
bem até
demais
Nenhum falante de língua materna
irracional
irreduzível
irredimível
irreconhecível
descarrilada
desordenada
deformada
de forma livre
obscuro até o limite do
Verdadeiro Certo Correto
Qualquer um ou qualquer pessoa
Cada cada-um todos
afogando num mar de lógica
este monstruoso estado de paralisia
ainda doente
- - - - -
Sintomas: Sem comer, sem dormir, sem falar, sem desejo
sexual, em desespero, quer morrer.
Diagnóstico: Dor patológica.
Sertralina, 50 mg. Insônia piorada, forte ansiedade,
anorexia, (perda de 17 kg,) aumento de intenção, planos e pensamentos suicidas.
Interrompido após hospitalização.
Zopiclona, 7,5 mg. Dormiu. Interrompido após erupções
na pele. Paciente tentou deixar o hospital à revelia do médico. Detida por três
enfermeiros duas vezes maiores que ela. Paciente ameaçadora e não-cooperadora.
Idéias paranóicas – acredita que os funcionários do hospital estão tentando
envenená-la.
Melleril, 50 mg. Cooperadora.
Lofepramina, 70 mg, dobrada para 140 mg, depois 210
mg. Ganho de 12 kg. Perda de memória recente. Nenhuma outra reação.
Discussão com médico residente que ela acusou de
traição depois do que ela raspou a cabeça e cortou os braços com uma lâmina de
barbear.
Paciente liberada para o cuidado da comunidade com a
chegada de paciente gravemente psicótico à sala de emergência com maior
necessidade de um leito hospitalar.
Citalopram, 20 mg. Tremores pela manhã. Nenhuma outra
reação.
Lofepramina e Citalopram interrompidos depois que
paciente ficou puta devido aos efeitos colaterais e ausência de melhora
evidente. Sintomas após a interrupção: Tonturas e confusão. Paciente ficou
caindo, desmaiando e andando na frente de carros. Idéias alucinadas – acredita
que o especialista é o anticristo.
Cloridrato de Fluoxetina, nome comercial Prozac, 20
mg, dobrada para 40 mg. Insônia, apetite irregular, (perda de 14 kg,) forte
ansiedade, incapaz de atingir orgasmo, idéias homicidas em relação a vários
médicos e fabricantes de drogas. Interrompido.
Humor: Fodidamente raivoso.
Comportamento: Muito raivoso.
Thorazine, 100mg. Dormiu. Mais calma.
Venlafaxina, 75 mg, dobrado para 150 mg, depois 225
mg. Tontura, baixa pressão sanguínea, dores de cabeça. Nenhuma outra reação.
Interrompido.
Paciente recusou Seroxat. Hipocondria – menciona
espasmos de piscar de olhos e forte perda de memória como evidência de
dyskinesia tardia e demência tardia.
Recusou qualquer outro tratamento.
100 Aspirinas e uma garrafa de Cabernet Sauvignon
búlgaro, 1986. Paciente acordou numa piscina de vômito e disse "Durma com
um cachorro e levante cheio de moscas". Fortes dores estomacais. Nenhuma
outra reação.
- - - - -
Escotilha se abre
Luz total
a
televisão fala
cheia
de olhos
os
espíritos da visão
e
agora estou com tanto medo
Eu
estou vendo coisas
Eu
estou ouvindo coisas
Eu
não sei quem sou
língua
para fora
pensamento
truncado
os
colapsos inconstantes da minha mente
Onde eu começo?
Onde eu paro?
Como eu começo?
(Já que eu quero ir em frente)
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro? Uma
etiqueta de dor
Como eu paro? Apunhalando
meus pulmões
Como eu paro? Uma
etiqueta de morte
Como eu paro? Espremendo
meu coração
Eu
vou morrer
ainda não
mas está lá
Por favor...
Dinheiro...
Esposa...
Todo ato é um símbolo
cujo peso me esmaga
Uma linha pontilhada na garganta
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
- - - - - -
CORTE
AQUI
NÃO DEIXE ISSO ME MATAR
ISSO VAI ME MATAR E ME ESMAGAR E
ME
MANDAR PARA O INFERNO
Eu te imploro para me salvar dessa loucura que me come
uma
morte sub-intencional
Eu achei que nunca deveria falar de novo
mas agora sei que há algo mais negro que o desejo
talvez
isso me salve
talvez
isso me mate
um assobio melancólico que é o choro de coração
partido ao redor da vasilha infernal no teto da minha mente
um
cobertor de baratas
pare
essa guerra
Minhas
pernas estão vazias
Nada
a dizer
E
esse é o ritmo da loucura
- - - - -
- Eu asfixiei os judeus, eu matei os curdos, eu
bombardeei os árabes, eu fodi criancinhas enquanto elas imploravam por
misericórdia, os campos de extermínio são meus, todos deixaram a festa por
minha causa, eu vou sugar os seus olhos de merda mandá-los numa caixa para sua
mãe e quando eu morrer vou reencarnar como sua filha só que cinqüenta vezes
pior e tão louca quanto tudo eu vou fazer da sua vida uma porra de um inferno
EU ME RECUSO EU ME RECUSO EU ME RECUSO NÃO ME OLHE [TIRE SEUS OLHOS DE MIM]
- Está tudo bem.
- NÃO ME OLHE [TIRE SEUS OLHOS DE MIM]
- Está tudo bem. Eu estou aqui.
- Não me olhe [Tire seus olhos de mim]
- - - - -
Somos anátemas
os párias da razão
Por que é que estou ferida?
Eu tive visões de Deus
e isso deve se passar
Preparai-vos:
pois sereis partidos em pedaços
isso deve se passar
Contemplai a luz do desespero
o fulgor da angústia
e sereis levados à escuridão
Se houver explosão
(haverá
explosão)
os nomes dos que ofendem serão gritados dos telhados
Temam Deus
e sua convocação perversa
uma chaga sobre minha pele, um fervilhar no meu
coração
um cobertor de baratas onde dançamos
esse infernal estado de sítio
Tudo isso deve se passar
todas as palavras do meu hálito nocivo
Lembre-se da luz e acredite na luz
Cristo está morto
e
os monges estão em êxtase
Somos os degradados
que destituímos nossos
líderes
e queimamos oferendas para
Baal
Venham agora, vamos pensar juntos
A sanidade é encontrada na montanha da casa do Senhor
no horizonte da alma que recua eternamente
A cabeça está doente, a membrana do coração dilacerada
Pisem o chão onde caminha a sabedoria
Abracem mentiras lindas –
a
insanidade crônica do são
as
torções têm início
- - - - -
- Às 4.48
quando a
sanidade visita
por uma hora e
doze minutos eu fico com a mente no lugar.
Quando isso
tiver passado eu terei ido outra vez,
uma marionete
fragmentada, um bufão grotesco.
Agora estou
aqui eu consigo me ver
mas quando
estou encantada pelas miragens vis da felicidade,
a magia
repugnante dessa máquina de feitiçaria,
eu não consigo
tocar na essência do meu eu.
Por que é que
você acredita em mim naquela hora e agora não?
Lembre-se da
luz e acredite na luz.
Nada importa
agora.
Pare de julgar
pelas aparências e faça um julgamento correto.
- Está tudo bem. Você vai ficar melhor.
- A tua falta de fé não cura nada.
Não me olhe.
- - - - - -
Escotilha se abre
Luz total
Uma mesa duas cadeiras sem janelas
Aqui estou eu
E lá está meu corpo
dançando
sobre vidro
Na hora do acidente onde não há acidentes
Você
não tem escolha
a
escolha vem depois
Corte minha língua
arranque meus cabelos
corte meus membros
mas me deixe meu amor
Eu preferia ter perdido minhas pernas
arrancado meus dentes
sugado meus olhos
do que ter perdido meu amor
brilha
pisca corta queima
torce aperta afaga
corta brilha pisca
soca queima flutua
pisca afaga pisca
soca pisca brilha
queima afaga
aperta torce aperta
soca pisca flutua
queima brilha pisca
queima
isso
nunca vai passar
afaga
pisca soca corta
torce corta soca
corta flutua pisca
brilha soca torce
aperta brilha aperta
afaga pisca torce
queima pisca afaga
brilha afaga flutua
queima aperta queima
pisca queima brilha
Nada
é para sempre
(fora
o Nada)
corta
torce soca queima
pisca afaga flutua
afaga pisca queima
soca queima
brilha afaga aperta
afaga torce pisca
flutua corta queima
corta soca corta
aperta corta flutua
corta pisca queima
afaga
Vítima.
Perpetrador. Espectador.
soca
queima flutua pisca
brilha pisca queima
corta torce aperta
afaga corta brilha
pisca afaga pisca
soca pisca brilha
queima afaga aperta
pisca torce aperta
soca brilha pisca
queima pisca brilha
a
manhã traz derrota
torce
corta soca
corta flutua pisca
brilha soca torce
afaga pisca soca
corta aperta brilha
aperta afaga pisca
torce queima pisca
afaga brilha afaga
flutua queima aperta
queima brilha pisca
corta
dor
maravilhosa
que
diz que eu existo
pisca
soca corta afaga
torce aperta queima
corta aperta corta
soca pisca brilha
aperta queima corta
afaga pisca flutua
brilha pisca afaga
aperta queima corta
aperta corta soca
brilha pisca queima
e
uma vida mais sã amanhã
- - - - -
100
93
86
79
72
65
58
51
44
37
30
23
16
9
2
- - - - -
A sanidade é encontrada no centro da convulsão, onde a
loucura é arrasada pela alma dividida.
Eu me conheço.
Eu me vejo.
Minha vida é apanhada numa teia de razão
tecida
por um médico para aumentar a sanidade.
Às 4.48
eu deverei dormir.
Eu vim a você esperando ser curada.
Você é meu médico, meu salvador, meu juiz onipotente,
meu padre, meu deus, o cirurgião da minha alma.
E eu sou sua seguidora na sanidade.
- - - - -
para atingir objetivos e ambições
para superar obstáculos e alcançar um alto padrão
para aumentar a auto-avaliação pelo sucesso no
exercício do talento
para superar a oposição
para ter controle e influência sobre os outros
para me defender
para defender meu espaço psicológico
para justificar o ego
para receber atenção
para ser vista e ouvida
para excitar, surpreender, fascinar, chocar, intrigar,
divertir, entreter ou seduzir os outros
para estar livre de restrições sociais
para resistir à coação e à constrição
para ser independente e agir conforme o desejo
para desafiar a convenção
para evitar a dor
para evitar a vergonha
para apagar humilhações passadas recapitulando ações
para manter o auto-respeito
para reprimir o medo
para superar a fraqueza
para pertencer
para ser aceita
para se aproximar e interagir agradavelmente com o
próximo
para conversar de maneira amigável, para contar
histórias, trocar sentimentos, idéias, segredos
para comunicar, para conversar
para rir e contar piadas
para conquistar a afeição do Outro desejado
para aderir e se manter fiel ao Outro
para gozar experiências sensuais com o Outro imaginado
para alimentar, ajudar, proteger, confortar, consolar,
apoiar, cuidar ou curar
para ser alimentada, ajudada, protegida, confortada,
consolada, apoiada, cuidada ou curada
para construir uma relação mutuamente agradável,
durável, cooperativa e recíproca com o Outro, com um igual
para ser perdoada
para ser amada
para ser livre
- - - - -
- Você viu o pior de mim.
- Sim.
- Eu não sei nada de você.
- Não.
- Mas eu gosto de você.
- Eu gosto de você.
(Silêncio.)
- Você é minha última esperança.
(Um longo
silêncio.)
- Você não precisa de uma amiga você precisa de um
médico.
(Um longo
silêncio.)
- Você está tão errada.
(Um silêncio
muito longo.)
- Mas você tem amigos.
(Um longo
silêncio.)
Você tem
muitos amigos.
O que você dá
aos seus amigos para que eles te apóiem tanto?
(Um longo
silêncio.)
O que você dá
aos seus amigos para que eles te apóiem tanto?
(Um longo
silêncio.)
O que você dá?
(Silêncio.)
Nós temos um
relacionamento profissional. Acho que temos um bom relacionamento. Mas é
profissional.
(Silêncio.)
Eu sinto sua
dor mas eu não posso manter sua vida em minhas mãos.
(Silêncio.)
Você vai ficar bem. Você é forte. Eu sei que você vai
ficar bem porque eu gosto de você e não se pode gostar de uma pessoa que não
goste dela mesma. Temo pelas pessoas de que eu não gosto porque elas se odeiam
tanto que também não deixam ninguém gostar delas. Mas eu gosto mesmo de você.
Eu vou sentir sua falta. E sei que você vai ficar bem.
(Silêncio.)
A maioria dos meus clientes quer me matar. Quando eu
saio daqui no fim do dia eu preciso ir para casa para o meu amor e relaxar. Eu
preciso ficar com meus amigos e relaxar. Eu preciso mesmo dos meus amigos para
ficar realmente junto.
(Silêncio.)
Eu odeio essa porra desse trabalho e eu preciso dos
meus amigos para me manter são.
(Silêncio.)
Me desculpe.
- Não é culpa minha.
- Me desculpe, isso foi um erro.
- Não é culpa minha.
- Não. Não é culpa sua. Me desculpe.
(Silêncio.)
Eu estava
tentando explicar –
- Eu sei. Estou com raiva porque eu entendo, não
porque eu não entendo.
- - - - -
Engordada
Escorada
Expulsa
meu
corpo descompensa
meu
corpo voa para longe
não
há como alcançar
para
além da tentativa de alcançar que eu já fiz
você
vai ter sempre um pedaço de mim
porque você teve minha vida em suas mãos
aquelas mãos brutas
isso
vai acabar comigo
eu
achei que era silêncio
até se fazer silêncio
como você inspirou essa dor?
eu nunca entendi
o que é que eu não deveria
sentir
como um pássaro voando num
céu inchado
minha mente é rasgada por um
relâmpago
quando ela voa fugindo do
trovão
Escotilha se abre
Luz decidida
e Nada
Nada
vejo Nada
Como
eu sou?
a filha da negação
de uma câmara de tortura
para outra
uma vil sucessão de erros
sem perdão
cada passo do caminho eu caí
Desespero me impele ao
suicídio
Angústia para a qual os
médicos não podem encontrar cura
Nem querem entender
Eu espero que você nunca
entenda
Porque eu gosto de você
Eu gosto de você
Eu gosto de você
imóvel água preta
tão profunda como o infinito
tão fria como o céu
tão imóvel quanto meu
coração quando sua voz se foi
devo congelar no inferno
claro que eu te amo
você salvou minha vida
eu queria que você não
tivesse
eu queria que você não
tivesse
eu queria que você tivesse
me deixado sozinha
um filme preto e branco de sim ou não sim ou não sim
ou não sim ou não sim ou não sim ou não
Eu
sempre te amei
mesmo
quando te odiei
Como eu
sou?
exatamente como meu pai
ah não ah não ah não
Escotilha se abre
Luz decidida
a ruptura
começa
Eu não
sei mais para onde olhar
Cansada de procurar na multidão
Telepatia
e esperança
Ver as
estrelas
prever
o passado
e mudar o mundo com um eclipse de prata
a única coisa que é permanente é a destruição
nós vamos todos desaparecer
tentando deixar uma marca mais permanente do que eu
mesma
Eu não me matei antes então não procure precedentes
O que veio antes foi só o princípio
um
medo cíclico
não é
a lua é a terra
Uma
revolução
Querido Deus, querido Deus, o que eu devo
fazer?
Tudo
que eu sei
é
neve
e negro desespero
Não
sobrou nenhum lugar para me virar
um espasmo moral sem efeito
a única alternativa ao assassinato
Por favor não me corte para descobrir como morri
Eu te digo como morri
Cem de Lofepramina, quarenta e cinco de Zopiclona,
vinte e cinco de Temazepam, e vinte de Melleril
Tudo que eu tinha
Engolida
Cortada
Enforcada
Está feito
cuidado
com o Eunuco
de pensamento castrado
crânio
sem
ferimento
a
captura
a loucura
a ruptura
de uma alma
uma
sinfonia solo
às
4.48
a
hora feliz
quando
a claridade visita
escuridão
quente
que
alaga meus olhos
eu
não conheço pecado
essa
é a doença de se tornar grande
essa
necessidade vital pela qual eu morreria
ser
amada
eu estou morrendo por alguém que não se importa
eu estou morrendo por alguém que não sabe
você
está me quebrando
Fala
Fala
Fala
um
círculo de fracasso de dez metros
não
me olhe
Minha última declaração
Ninguém
fala
Me legitime
Me testemunhe
Me veja
Me ame
minha
submissão final
minha
derrota final
a galinha ainda dança
a galinha não vai parar
eu
penso que você pensa de mim
do
jeito que eu quis que você pensasse de mim
o parágrafo final
o ponto final final
cuide
de sua mãe agora
cuide
de sua mãe
Cai
neve negra
na
morte você me abraça
nunca livre
eu não tenho nenhum desejo
da morte
nenhum suicida jamais teve
me veja esvanecer
me veja
esvanecer
me veja
me veja
veja
Sou eu mesma que eu nunca encontrei, cuja face está
colada no lado inferior da minha mente
por favor abra as cortinas
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